Poucos reconheceriam Robert Allen Zimmerman ao cruzá-lo na rua, mas Bob Dylan carrega uma presença que transcende o tempo. Insolente, irreverente, introspectivo, afável, paradoxalmente acessível e impenetrável, ele revolucionou a música e se tornou um dos nomes mais influentes da cultura popular sem jamais perder a inquietação criativa.
Se o filme de James Mangold conseguisse apenas reacender a paixão dos admiradores de longa data ou despertar o interesse de novas gerações pelo legado de Dylan, já teria sua relevância assegurada. Mas sua proposta vai muito além. Distante das abordagens enaltecedoras que se rendem à mitificação, a obra equilibra com precisão narrativa e autenticidade, transportando o espectador para um período em que até os grandes conflitos globais pareciam menos opressivos, menos dilacerantes.
Durante 140 minutos, Mangold conduz um retrato impregnado de música e poesia, exatamente como Dylan tem feito desde que deixou Duluth, Minnesota, e seguiu para Nova York. Inspirado no livro de Elijah Wald, “Dylan Goes Electric!”, o filme reconstrói a trajetória de um artista que sempre esteve à frente de seu tempo.
O roteiro captura tanto o jovem determinado que desembarcou na cidade com um violão e uma gaita quanto o homem que, consciente de seu talento, desafiou convenções e polarizou plateias. Algumas cenas despertam risos involuntários, outras convidam à contemplação silenciosa, mas todas convergem para um retrato que evita a armadilha da idealização. Dylan nunca foi um ícone maleável ao gosto do público, e é essa honestidade que ressoa a cada instante da projeção.
A força do filme reside, sobretudo, na atuação impecável de Timothée Chalamet, cuja entrega ao papel reforça o magnetismo do protagonista. Sua interpretação, que merecia um lugar entre as maiores premiações do cinema, revela um Dylan meticuloso e intuitivo, obstinado em capturar a essência de cada canção como se sua existência dependesse disso.
O roteiro, assinado por Mangold e Jay Cocks, pontua esse percurso com figuras centrais na formação do artista, como Woody Guthrie, que recebe Dylan em seu leito de morte, e Pete Seeger, testemunha da ascensão do jovem trovador. A jornada começa em uma Nova Jersey soturna, onde um garoto de vinte anos dá início a uma odisseia menos romântica do que os mitos sugerem, mas infinitamente mais fascinante.
Mangold ancora sua narrativa na turbulência histórica do início dos anos 1960, ilustrada pela tensão da Crise dos Mísseis de Cuba. Enquanto Manhattan se esvaziava, nos porões dos bares folk surgiam melodias que ecoariam por décadas. É nesse cenário que Dylan desponta, compondo hinos que desafiam autoridades e antecipam movimentos sociais. Em um desses palcos subterrâneos, Joan Baez, interpretada com elegância por Monica Barbaro, encanta com sua voz marcante, preparando o terreno para um encontro que moldaria ambos os artistas. O filme traduz essa parceria com lirismo, sem ignorar os conflitos e a inevitável transformação de suas trajetórias.
Chalamet imprime camadas de ambiguidade a Dylan, especialmente ao retratar seus envolvimentos simultâneos com Joan Baez e Suze Rotolo, a musa eternizada na capa de “The Freewheelin’ Bob Dylan”. “Um Completo Desconhecido” captura esse período de efervescência criativa e emocional, culminando no Festival de Newport de 1965, onde a introdução de guitarras elétricas gerou reações inflamadas. Em vez de reforçar as versões sensacionalistas sobre a rejeição do público, Mangold opta por destacar a amizade entre Dylan e Johnny Cash, vivida com intensidade por Boyd Holbrook. O momento em que Cash destrói acidentalmente vários carros em uma manhã seguinte de ressaca é apenas um dos muitos episódios que adicionam humanidade à narrativa.
O filme se torna ainda mais envolvente ao mostrar Dylan como um artista que nunca se acomodou. Chalamet, em um de seus desempenhos mais marcantes, transmite essa inquietação com naturalidade, oscilando entre momentos de introspecção e explosões de irreverência. Sua dedicação ao papel incluiu anos de aulas de violão e canto, garantindo uma autenticidade raramente vista em cinebiografias musicais. O elenco secundário acompanha esse nível de excelência, com Elle Fanning conferindo delicadeza a Sylvie e Barbaro trazendo presença magnética a Baez. O Oscar pode ter ignorado Chalamet, mas seu Dylan, tal como o verdadeiro, continua avançando sem olhar para trás, firme em sua própria estrada.
★★★★★★★★★★