Nia DaCosta não apenas dirigiu um filme, mas ergueu um espelho incômodo para uma América que se recusa a enxergar sua própria falência social. “Passando dos Limites” não se rende ao maniqueísmo de narrativas que romantizam a precariedade ou condenam aqueles que, diante da falta de alternativas, atravessam a linha da legalidade. Em vez disso, articula um retrato implacável de personagens aprisionadas por um sistema que as empurra, inexoravelmente, para escolhas impossíveis. O filme se descola da tradicional estrutura do drama criminal para se posicionar como um estudo minucioso da desigualdade e da sobrevivência nos limites do possível. Ao fazer isso, se inscreve na linhagem de títulos como “Inverno da Alma” e “Rio Congelado”, mas com uma assinatura própria, marcada pela recusa em fazer concessões à catarse ou à condescendência.
Ollie (Tessa Thompson) e Deb (Lily James) não são apenas protagonistas; são a personificação de uma realidade vivida por milhões, mas raramente dramatizada com tanta autenticidade. Ollie, à beira de encerrar sua liberdade condicional, vê sua chance de recomeçar evaporar diante da iminente perda da casa da família. Deb, já lutando para criar um filho sozinha, descobre uma gravidez indesejada e se depara com o absurdo financeiro que acompanha qualquer decisão a respeito dela.
Entre a impossibilidade de manter um lar e o custo inatingível de uma gestação sem seguro de saúde, ambas são encurraladas por um sistema que sequer lhes concede o direito à escolha. Não há saídas limpas, apenas a necessidade de continuar. E quando o trabalho formal e honesto não cobre sequer o básico, quando a assistência social é um conceito abstrato e a estabilidade financeira é um luxo inalcançável, a linha entre legalidade e sobrevivência se dissolve.
A força do filme não reside apenas na história que conta, mas na maneira como a conta. DaCosta constrói sua narrativa sem pressa, permitindo que cada silêncio, cada expressão carregada de resignação ou cansaço fale mais alto do que qualquer monólogo expositivo. A economia verbal se reflete na estética: a fotografia de Matt Mitchell traduz em imagens a aridez de uma existência onde os sonhos são continuamente substituídos por boletos impagáveis. O horizonte infinito da Dakota do Norte, filmado com uma paleta fria e dessaturada, reforça a sensação de isolamento físico e emocional. Não há trilha sonora melodramática para conduzir as emoções do espectador, porque a dor aqui não precisa de ênfase — ela já é insuportavelmente real.
Se há um elemento que enfraquece a potência do filme, é o ocasional didatismo do roteiro, que por vezes recorre a diálogos desnecessariamente explícitos para reforçar pontos que já estão cristalinos na experiência das personagens. Frases que verbalizam a falta de opções ou a dureza do sistema poderiam ser substituídas pela própria mise-en-scène, que já evidencia tudo isso com brutal clareza. No entanto, essas pequenas falhas não comprometem o impacto geral de “Passando dos Limites”, que se mantém como um dos retratos mais urgentes e verossímeis da precarização da vida nos Estados Unidos contemporâneos.
Ao invés de oferecer um desfecho conciliador, “Passando dos Limites” encerra sua jornada com a mesma brutalidade silenciosa que permeia toda a narrativa. O destino de Ollie e Deb não é resolvido por um gesto heroico ou uma reviravolta redentora, mas pela continuidade do ciclo de luta e resistência. Essa escolha não é apenas coerente com o que o filme se propõe a dissecar — ela amplifica a crítica de DaCosta ao sistema que aprisiona suas protagonistas.
O verdadeiro impacto do longa não está em uma resolução definitiva, mas na forma como desafia o espectador a refletir sobre a fragilidade da segurança social e a normalização da desigualdade. Se há uma saída para essas personagens, ela não se encontra na tela, mas na urgência de mudanças estruturais que o filme insinua, mas jamais banaliza. “Passando dos Limites” não pede empatia; ele exige indignação.
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