Continuação da história de João Grilo e Chicó, que acaba de chegar ao Prime Video, é a maior decepção do ano Divulgação / H20 Films

Continuação da história de João Grilo e Chicó, que acaba de chegar ao Prime Video, é a maior decepção do ano

Tragédias marcam de tal forma a existência dos homens que se algum dia conhecêssemos todos a felicidade, todo tempo e ao longo da vida inteira, decerto teríamos passado a uma outra espécie, quiçá mais evoluída ou nem tanto, mas outra, com muito pouco do que nos definia como homo sapiens sapiens, os homens que sabem que sabem. A humanidade se divide entre os céticos, mas que não deixam de acreditar em milagres — inclusive os que não se materializam nunca — e os cínicos, aqueles que atribuem uma aura de sobrenatural a tudo quanto se passa na Terra.

João Grilo, o anti-herói nacional mais popular do cinema, é um misto dos dois, e agora, em “O Auto da Compadecida 2”, volta disposto a recuperar o tempo perdido. Não existe nenhuma garantia de que histórias já rodadas consigam renascer e dar em bons filmes. É nisso que Guel Arraes parece acreditar, e movido por um saudosismo — e uma vontade de alcançar sucesso financeiro similar ao do primeiro longa, lançado um quarto de século atrás —, o diretor faz chegar ao público essa continuação um tanto melancólica, sem nada do vigor do filme original. Se não, vejamos.

O fim ronda o gênero humano como moscas à volta de um acepipe cheio de creme (mas com notas pronunciadamente amargas), e antes ainda da morte, é o acaso quem se insinua sem pejo a gente de todos os sangues e todas as culturas. É com o acaso que temos de nos haver todo santo dia, ansiando por escapar de suas armadilhas, mas à mercê também de desfrutar de suas repentinas indulgências e viver momentos que, por mais fugazes que venham a ser, legitimam toda uma jornada. João Grilo, eternizado por Matheus Nachtergaele em “O Auto da Compadecida” (2000), dirigido por Arraes a partir da comédia dramática de mesmo nome de Ariano Suassuna (1927-2014), o ideólogo e patrono do Movimento Armorial, flerta com a morte e, mais importante, ganha a vida com ela. Essa pedra angular da índole de Grilo mantém-se em “O Auto 2”, felizmente, mas desgasta-se frente à constatação de que o registro cinematográfico de Suassuna envelheceu.

Nachtergaele sai-se bem na medida do possível, o que não se aplica a Selton Mello. Na pele de Chicó, o contraponto ingênuo do Amarelo Mais Sabido do Mundo, Mello erra miseravelmente na prosódia, sem conseguir o sotaque já no prólogo, quando seu personagem conduz uma caravana de turistas até Taperoá, cidade do cariri paraibano na qual se passa a história, ávidos por conhecer o sítio exato onde o amigo morreu. Ajudado por Flávia Lacerda, ex-diretora de novelas da Rede Globo, Arraes até oxigena certos pontos do enredo, incluindo tipos saborosamente caricatos como o Coronel Ernani de Humberto Martins e Arlindo, o empreendedor mais bem-sucedido (porque o único) de Taperoá, ambos interessados no comando do município, que fica mais fácil com o apoio de Grilo, tido por santo pela população.

Tudo o mais é modorrentamente enfadonho, especialmente o novo julgamento do Amarelo, mediado pela Nossa Senhora que era de Fernanda Montenegro e agora passa a Taís Araújo — sem que ninguém explique a razão da troca. Percebe-se em Nachtergaele a gana por fazer “O Auto da Compadecida 2” dar certo, mas um só cardeal-do-nordeste não tece a manhã.

Filme: O Auto da Compadecida 2
Diretor: Guel Arraes e Flávia Lacerda
Ano: 2024
Gênero: Comédia/Drama/Fantasia
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.