O melhor filme indicado ao Oscar 2025 foi ignorado, mas você já pode assisti-lo no Prime Video Divulgação / Amazon Prime Video

O melhor filme indicado ao Oscar 2025 foi ignorado, mas você já pode assisti-lo no Prime Video

A experiência cinematográfica nos habituou a observar personagens através de um recorte que os aprisiona em uma moldura invisível, como se estivéssemos condenados a assistir sem jamais atravessar a tela. “O Reformatório Nickel”, dirigido por RaMell Ross e inspirado no romance homônimo de Colson Whitehead, rompe essa barreira com um gesto audacioso: transforma a câmera em um veículo de imersão absoluta. Não se trata apenas de um truque formal, mas de um posicionamento ético e narrativo que desafia a gramática clássica do cinema. Ao invés de observar Elwood Curtis e seus companheiros como se fossem figuras distantes em um museu de horrores históricos, somos colocados dentro de sua percepção, absorvendo o mundo através de seus sentidos, seus medos, sua impotência e suas pequenas fagulhas de esperança.

Esse princípio transforma “O Reformatório Nickel” em uma experiência sensorial que recusa o distanciamento. Desde o primeiro instante, o filme nos envolve em uma textura de memórias fragmentadas que se sobrepõem ao presente narrativo. O formato de tela quadrado, evocando uma intimidade quase sufocante, funciona como uma janela que não apenas nos convida a olhar, mas nos obriga a estar. O espectador não vê apenas o que acontece — ele sente. Laranjas brilhando sob a luz filtrada por folhas, o tremor imperceptível dos dedos de Elwood sobre uma página de “Orgulho e Preconceito”, a aspereza do chão de terra sob os pés descalços. Esses elementos não são acessórios visuais, mas âncoras emocionais que constroem a identidade do protagonista.

Elwood é um jovem negro criado pela avó Hattie na Flórida segregacionista dos anos 1960, sustentado pela crença de que a justiça é uma promessa concreta, não um ideal distante. Mas essa certeza se desfaz abruptamente quando ele é enviado à Academia Nickel por um erro banal. O local, apresentado ao mundo como um reformatório, opera como uma máquina implacável de brutalidade institucional. A violência, no entanto, raramente é mostrada de forma explícita. Em vez disso, RaMell Ross nos faz senti-la na arquitetura opressiva, na rigidez corporal dos garotos, nas sombras projetadas por corpos que desapareceram sem deixar vestígios. É um horror que ecoa nos vazios, nas ausências, nos silêncios carregados de significados impossíveis de verbalizar.

A dinâmica entre Elwood e Turner, seu colega de reclusão, adiciona camadas à experiência imersiva do filme. Elwood resiste à brutalidade com uma fé inabalável na justiça, enquanto Turner, mais cético, entende que a sobrevivência depende de uma visão pragmática do mundo. A câmera se posiciona entre esses dois polos, oscilando entre a transparência ingênua de Elwood e o olhar esquivo de Turner. Em cenas de tensão extrema, a perspectiva se estreita ainda mais — quando Elwood se aproxima de uma esquina sem saber o que o aguarda, a câmera não nos permite ver além, intensificando a sensação de impotência. O terror não está apenas no que acontece, mas no que não conseguimos antecipar.

A escolha estética de Ross não é apenas uma estratégia visual sofisticada; é uma desconstrução consciente da forma como o cinema tradicional tem representado histórias sobre a experiência negra. Ao evitar a estetização da dor e o voyeurismo da violência, “O Reformatório Nickel” desafia um paradigma que por décadas transformou o sofrimento negro em espetáculo. A brutalidade aqui não é um evento gráfico a ser consumido, mas uma presença constante, gravada na textura da imagem, nos enquadramentos que sufocam, nos gestos interrompidos.

Essa abordagem se torna ainda mais potente quando percebemos que a narrativa se desenrola como um fluxo descontínuo de lembranças. O tempo não segue uma linearidade convencional; em vez disso, as memórias invadem o presente, e o futuro se esconde nos interstícios do passado. Momentos de ternura e desespero coexistem, como se a própria lembrança se recusasse a ser domada. Uma bolinha de gude deslizando por uma escada, um brilho dourado nos olhos de um menino que ainda não conheceu o inferno, um reflexo fugidio em uma superfície metálica — fragmentos de uma história que não se desenrola, mas se dissolve, se refaz e se perde.

Inspirado no escândalo da Escola Dozier, que permaneceu encoberto por décadas até sua revelação em 2011, “O Reformatório Nickel” não se contenta em reconstruir os eventos. Ele se recusa a ser um mero documento do passado e exige um enfrentamento do presente. O filme não busca apenas relatar uma tragédia histórica, mas explorar o que significa lembrar — e, sobretudo, o que significa ser forçado a esquecer.

Na performance contida e devastadora de Ethan Herisse, Elwood não precisa gritar para que compreendamos sua angústia. Seu olhar, por si só, carrega o peso de uma história que persiste. Ao seu lado, Brandon Wilson constrói Turner como um espelho distorcido de Elwood, um personagem cuja descrença no sistema não vem do cinismo, mas da constatação de que sonhar pode ser uma sentença de morte. A cinematografia de Jomo Fray eleva a experiência visual a um nível quase pictórico, onde cada quadro parece esculpido pela luz e pela ausência dela.

Mas o que torna “O Reformatório Nickel” inescapável não é apenas seu rigor estético ou seu impacto emocional. É sua recusa em permitir que o espectador assista passivamente. O filme não se encerra quando as luzes se acendem. Ele persiste, ecoa, se infiltra nos espaços de silêncio que deixamos dentro de nós. Mais do que uma narrativa sobre o passado, é um confronto direto com a memória — e, por extensão, com a responsabilidade que temos de carregá-la.

Filme: O Reformatório Nickel
Diretor: RaMell Ross
Ano: 2024
Gênero: Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★