Ambientado em uma Bogotá sufocada pela violência, corrupção e instabilidade dos anos 1990, “Bogotá: A Cidade dos Sonhos Perdidos” ultrapassa a mera representação da imigração sul-coreana para se tornar um perturbador estudo sobre como circunstâncias extremas moldam a identidade e corrompem a moral. Ao narrar a trajetória complexa e conflituosa do jovem Kook-hee (Song Joong-ki), o filme de Kim Seong-je apresenta não apenas a jornada de um homem em busca de sobrevivência, mas a degradação gradual da inocência diante das inevitáveis realidades do exílio. A capital colombiana, muito mais que cenário, emerge como uma entidade viva, um labirinto que devora sonhos e reduz indivíduos a sombras irreconhecíveis de si mesmos.
Desde o desembarque no Aeroporto El Dorado, o roteiro rejeita toda ilusão de hospitalidade ou promessa de sucesso fácil, oferecendo, em vez disso, uma sequência inicial devastadora: o roubo brutal das economias familiares logo nos primeiros minutos da chegada ao país. Com este golpe simbólico, que Song Joong-ki interpreta com intensidade contida, Kook-hee percebe abruptamente que sobreviver exigirá dele não apenas tenacidade, mas também a capacidade de abandonar valores antes considerados intocáveis. É nesse ponto que a atuação precisa do protagonista assume uma força singular, conferindo camadas profundas ao personagem, cujo olhar ingênuo se dissipa progressivamente, dando lugar à dureza pragmática daquele que perdeu muito mais que apenas dinheiro — perdeu parte de sua humanidade.
Kook-hee encontra, então, no enigmático Sargento Park (Lee Hee-jun), um mentor perturbadoramente ambíguo, que desafia os limites de uma tradicional relação mestre-aprendiz. Park, veterano endurecido pela Guerra do Vietnã, surge como um condutor sombrio, alguém que conhece intimamente as engrenagens subterrâneas da corrupção e do contrabando em Bogotá. Lee Hee-jun interpreta Park com uma austeridade magnética, evidenciando uma moralidade tão frágil quanto contraditória, que seduz e repele simultaneamente o jovem protagonista. Ao invés de proteger Kook-hee da corrupção, Park o introduz cuidadosamente nela, criando uma relação na qual confiança e traição coexistem perigosamente próximas.
Nesse ponto crítico da narrativa, surge o personagem mais desestabilizador do filme: Soo-yeong (Kwon Hae-hyo), um homem calculista e articulado que oferece ao protagonista uma proposta tão irresistível quanto destrutiva. Soo-yeong é a personificação da tentação que desafia definitivamente o já frágil equilíbrio ético de Kook-hee, representando uma escolha entre duas formas distintas de condenação. A interpretação sutil e vigorosa de Kwon Hae-hyo transmite precisamente essa dualidade: Soo-yeong é ao mesmo tempo um manipulador frio e um reflexo perturbador do que Kook-hee poderá se tornar se sucumbir inteiramente às exigências do ambiente.
Em termos estéticos e narrativos, Kim Seong-je privilegia o realismo áspero sobre qualquer idealização romântica do crime organizado, estabelecendo uma conexão visceral com a angústia diária dos personagens. A cinematografia primorosa captura a crueza das ruas colombianas, impregnadas de violência latente e desesperança silenciosa, onde imigrantes coreanos se tornam reféns perpétuos de sua própria vulnerabilidade. O filme sugere, com clareza dolorosa, que a “cidade dos perdidos” não é somente Bogotá, mas também um estado interno de desalento e desenraizamento — o resultado inevitável de anos vivendo à margem, negociando constantemente a própria identidade.
Ainda assim, há um aspecto desafiador na proposta estilística do diretor: o ritmo do filme é deliberadamente lento, introspectivo, exigindo do espectador paciência e disposição para absorver nuances psicológicas e emocionais que substituem a ação explosiva tradicional do gênero thriller. Essa abordagem, embora rica em profundidade, pode afastar aqueles que procuram apenas adrenalina e emoção imediata, mas certamente premiará quem estiver disposto a mergulhar na densidade narrativa cuidadosamente construída por Kim Seong-je.
A maior contribuição de “Bogotá: A Cidade dos Sonhos Perdidos”, entretanto, reside no questionamento implacável sobre a essência do ser humano quando confrontado com escolhas que ameaçam sua própria identidade. Ao evitar soluções fáceis ou redentoras, o filme força o espectador a encarar uma verdade incômoda: o preço da sobrevivência em circunstâncias extremas frequentemente é o abandono silencioso das virtudes que um dia nos definiram. Assim, o fechamento da obra não se limita a sintetizar suas ideias principais, mas expõe uma provocação final ao espectador — não uma resposta, mas uma inquietação que ressoa muito tempo depois dos créditos finais. Afinal, talvez todos sejamos, de alguma forma, habitantes de nossa própria Bogotá particular: uma cidade interna, sem nome nem saída, da qual escapamos apenas abrindo mão, lentamente, daquilo que já fomos um dia.
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