Fernanda Torres perdeu o Oscar de melhor atriz para Mikey Madison. Demi Moore também perdeu para Madison. Mas Madison é uma jovem atriz americana, assim como a senhora Demi Moore o é. Importante relembrar esse fato: o Oscar é um prêmio de cinema criado por americanos para americanos — claro, “norte-americanos”. Logo, o Oscar de Melhor Filme Internacional — o nome diz tudo — parece ser uma espécie de salinha ao lado, para contemplar estrangeiros (com razão!) deslumbrados com a maior honraria da sétima arte, apesar de seu inegável bairrismo.
Ante esse fato, a categoria Melhor Filme Internacional não desmerece Walter Salles: faz justiça ao maior cineasta brasileiro em atividade, ao contrário de uma categoria injusta com intérpretes estrangeiros, visto que não existe a categoria “Atriz Internacional” no Oscar. Fernanda Torres subiu ao ringue para disputar com Demi Moore na terra do Tio Sam, desta vez sem o voto da imprensa estrangeira que compõe o Globo de Ouro — menos bairrista e, portanto, mais apto a fazer justiça.
Se não existisse a categoria Filme Internacional, “Anora” continuaria sendo o filme favorito da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Porque, claro, é uma produção doméstica. Resumo da ópera: se houvesse o prêmio de Melhor Atriz “Internacional”, provavelmente Fernanda Torres teria trazido a estatueta na mochila — segundo parte da crítica especializada. Mas, diferente dos filmes, não há Melhor Atriz “Internacional”. Enquanto disputarmos com norte-americanos no mesmo terreno que eles, os acadêmicos da indústria cinematográfica continuarão privilegiando os seus, em qualquer categoria. Não podemos esquecer que estamos falando de uma indústria, ao pé da letra, e de um país que valoriza seus artistas como ninguém.
Dito isso, “Ainda Estou Aqui” marcou presença até o fim. Estava lá, em Los Angeles, e trouxe um prêmio inédito para o cinema nacional. Generosa, Fernanda Torres lembrou que, se tivesse que optar, preferia mesmo que o filme ganhasse a estatueta. Faria justiça não a uma pessoa, mas a um país inteiro e a uma família destroçada. Em tempos de guerras culturais e moralismo radical, “Ainda Estou Aqui” é uma ironia, porque gira em torno justamente de uma família destruída por um regime que supostamente se identifica com a família. Aliás, uma família bem tradicional, composta por marido, mulher e muitos filhos. Não existem gays em “Ainda Estou Aqui”, nem “apologia” ao homossexualismo (lembrando que já eram presentes nos anos 60, de contracultura). Claro, a família Paiva não é uma família careta: os filhos menores de idade ouvem “Je T’aime — Moi Non Plus” na sala, durante uma reunião familiar. Tudo muito saudável e sem culpas.
“Ainda Estou Aqui” é um filme em duas partes, de uma harmonia logo transformada em horror. Porque de repente a casa dessa família é invadida por agentes do Estado e tudo vem abaixo. Os moralistas amantes da “liberdade” censuram todos que não pensam como eles e levam o ex-deputado Rubens Paiva embora, para nunca mais devolvê-lo. Seu corpo até hoje não foi encontrado. A história centrada em Eunice Paiva (esposa de Rubens, interpretada por Fernanda Torres) é um lembrete dos perigos que rondam o Brasil e o mundo atual. Apesar de falado em português, é, portanto, compreensível em qualquer lugar do Ocidente — mesmo nos Estados Unidos de hoje —, sob nova ameaça do fascismo. Os minutos finais em que a idosa Eunice aparece interpretada por Fernanda Montenegro (silêncio eloquente) transformam o Alzheimer em lembrança: é preciso não esquecer jamais, para que não se repita. Fernanda Montenegro é o Brasil.
Assistido por mais de 5 milhões de brasileiros até o momento, “Ainda Estou Aqui” deu um fôlego enorme para a cultura deste país, depois de quatro anos de massacre cultural. Períodos políticos adversos têm o estranho dom de fazer supitar grandes obras de arte, como foi a MPB nos anos 70. São respostas às nossas angústias coletivas mais profundas, em forma de metáforas ou mesmo do realismo mais sutil e compreensível, como é o caso de “Ainda Estou Aqui”, nascido de um livro, de uma obra literária de Marcelo Rubens Paiva. E, salvo os detratores com sua ignorância incurável, o Brasil compreendeu.
Foi o máximo ver os brasileiros reunidos na rua comemorarem nossa vitória no cinema, na arte e na cultura com o mesmo entusiasmo com que se assiste a uma final de Copa do Mundo de Futebol — mais popular, impossível. As ruas deram a prova de que o Brasil pode ser generoso consigo mesmo. Prova de que este povo ainda tem esperanças, sendo capaz de compreender e se conectar com o que há de mais belo e refinado, apesar de tanta idiotice e estupidez à disposição, nos esgotos das redes sociais. Essa era de ignorância ainda não passou; talvez esteja apenas começando, e por isso vamos precisar continuar resistindo com a coragem de “Ainda Estou Aqui”, prontos para atender ao desafio de Eunice Paiva: de cabeças erguidas, “Nós vamos sorrir!”.