Há 403 dias no TOP10 da Apple TV+, obra-prima de Scorsese tem 97% no Rotten Tomatoes Divulgação / Apple Studios

Há 403 dias no TOP10 da Apple TV+, obra-prima de Scorsese tem 97% no Rotten Tomatoes

A história do século 20 está repleta de episódios silenciados, eventos que, por conveniência ou descaso, foram relegados ao esquecimento. Entre eles, a sequência de assassinatos da Nação Osage nos anos 1920, tragédia que Martin Scorsese resgata em “Assassinos da Lua das Flores”. Longe de ser apenas um relato histórico, o filme se impõe como uma dissecação implacável do oportunismo e da violência institucionalizada, conduzida por um cineasta que há décadas investiga os recantos mais sombrios da natureza humana. Com uma direção meticulosa e atuações irretocáveis, a obra não apenas preserva essa história para as gerações futuras, mas a insere no imaginário coletivo com o peso e a complexidade que lhe são devidos.

Baseado no livro homônimo de David Grann, o enredo se ancora na ascensão e queda de uma comunidade que, ao descobrir petróleo em suas terras, viu sua prosperidade se converter em sentença de morte. O protagonista, Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), é um homem dilacerado por lealdades conflitantes. Incentivado pelo tio, William King Hale (Robert De Niro), ele se casa com Mollie (Lily Gladstone), uma mulher Osage cujas conexões familiares garantem um acesso privilegiado às riquezas da tribo. Mas essa união, em vez de representar uma ponte entre culturas, revela-se um estratagema para a pilhagem meticulosa dos bens indígenas. À medida que os assassinatos se sucedem e a impunidade prevalece, a tensão se adensa, levando o espectador a uma experiência angustiante, marcada por traições e uma violência sempre latente.

Como de costume, Scorsese estrutura sua narrativa em torno da moralidade dúbia de seus personagens. Hale, interpretado por De Niro com uma serenidade inquietante, encarna o predador que se esconde sob o véu da benevolência, manipulando seu entorno sob a justificativa de uma missão civilizatória. Já Burkhart representa a fraqueza moral em sua forma mais crua, um homem que oscila entre o afeto genuíno por Mollie e sua submissão ao tio. Essa dinâmica culmina em uma tragédia cujas consequências transcendem as vítimas diretas, reverberando por toda a cultura Osage, devastada por um ciclo de exploração que se estende por gerações. É essa dimensão histórica que confere ao filme um caráter tão perturbador.

Visualmente, a grandiosidade do longa se reflete na cinematografia de Rodrigo Prieto, que captura com precisão tanto a vastidão da paisagem quanto a opressão que permeia os espaços mais íntimos. Scorsese faz uso composições visuais que traduzem a psique de seus personagens, como na cena em que Ernest e Hale dialogam em um cômodo tenuemente iluminado, onde a escuridão circundante parece engolir os últimos vestígios de humanidade. A trilha sonora, utilizada de forma econômica, intensifica o impacto das cenas mais brutais, apostando no silêncio como cúmplice dos horrores narrados. Essa abordagem resulta em uma experiência cinematográfica imersiva, que se recusa a oferecer qualquer alívio ao espectador.

A duração extensa, de 206 minutos, pode ser um desafio, mas se justifica pela necessidade de dissecar as engrenagens de um genocídio institucionalizado. Scorsese adota um ritmo deliberado, onde cada cena adiciona camadas à corrosão moral e à corrupção que sustentam a trama. O desfecho, abrupto para alguns, reflete a natureza inconclusa da própria história: não há justiça plena para os Osage, apenas um registro tardio das atrocidades cometidas.

O elenco entrega performances que transcendem a mera atuação. DiCaprio, em sua sexta colaboração com Scorsese, explora as nuances de um personagem que oscila entre a servidão e a culpa. De Niro compõe um vilão de letalidade serena, enquanto Lily Gladstone se destaca como o coração da narrativa. Sua interpretação de Mollie, marcada por uma dor contida e uma dignidade inquebrantável, confere humanidade à trama, tornando-a um símbolo da resiliência indígena diante da barbárie. Seu trabalho, aliado à trilha de Robbie Robertson, imprime ao filme um tom de luto e resistência que ressoa muito além dos créditos finais.

“Assassinos da Lua das Flores” vai além da reconstrução histórica. Trata-se de uma análise sobre apagamento, sobre os mecanismos de poder que operam para distorcer e obscurecer verdades incômodas. Em um momento em que a memória coletiva segue sendo um campo de disputas, a obra de Scorsese se impõe como um testemunho essencial, um lembrete incômodo de que o passado nunca está realmente enterrado. O cinema, quando manejado com essa precisão e profundidade, não apenas reconta histórias  — ele as resgata do esquecimento e as reinsere no espaço que sempre lhes pertenceu.

Filme: Assassinos da Lua das Flores
Diretor: Francis Ford Coppola
Ano: 2023
Gênero: Crime/Drama/Faroeste
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★