Fazer o que… a vida não foi feita pra ser justa. Ou, ao menos, não parece se encaixar dentro do que assimilamos como justiça. O tempo inteiro é uma punhalada na nuca nos alertando que não há escapatória: o mundo não para pra corrigir as incongruências morais e as desigualdades nocivas que nos cercam. Agora mesmo, enquanto tomo meu chocolate quente com granulado na borda da xícara, algum pai de família atravessa o oceano gelado em fuga desesperada de bombas aéreas e campos minados. Se nada der certo, cruzará com a morte sem direito a coroas e discursos. Se tudo correr bem, chegará em terra firme lutando por aceitação e pela chance de recomeçar em território estranho.
Daqui a pouco eu chego em casa e, com pantufinhas nos pés, me queixarei da lentidão do Wi-Fi. Lamentarei também ter que maneirar na pizza, enquanto tem gente que come de tudo e não engorda. No sétimo dia, quando optou por descansar, Deus poderia ter trabalhado num projeto de padronização metabólica, amenizando a injustiça gerada por brigadeiros seletivos que escolhem certas cinturas e desprezam outras. Mas não posso reclamar. Tirando o contratempo de precisar segurar meu desejo por cacau, tem sido boa a vida. Sei lá por que, mas mereci mãe, pai, vó e tios afetuosos, enquanto tantos amargam solidão em ruas e orfanatos. Estudei em escola decente e recebi conhecimento que me ajudou a galgar a um bom emprego. Tenho ótima saúde (enquanto o excesso de brigadeiro permitir).
Há os que não possuem trabalho. Os que não desfrutam de boa saúde. Os que, em coincidência dramática, perderam ambos e alternam o tempo e a esperança entre a busca por serviço e a fila do hospital. Tem que rezar pra ter leito — não sei como fazem os ateus nessas horas. Vai saber o motivo que faz alguns agonizarem diante da falta de maca enquanto para outros sobram bangalôs fofinhos em praias refinadas. É uma lógica meio perturbadora essa que de um lado mima favorecidos com requinte e, do outro, deixa a dignidade humana escapar das mãos e ser neutralizada em nosso cotidiano. Vez ou outra a gente se revolta com anéis de 500 mil em dedos que surrupiaram umas horinhas do suor e da dor alheios. A gente até ensaia um grito indignado de libertação. Mas depois de um tempo permanece a resignação.
Vai ver que é porque a gente aprende desde criança que o mundo, como eu disse e repito, não é mesmo pra ser justo. É feito pra ter gente de terno e gente sem sapatos, pra acariciar o coração de quem encontra amor e rasgar a alma de quem sofre o abandono, pra aplaudir os que não honram as calças de grife e humilhar os que deram o azar de flertar com a pobreza. Em algum manual de criação deve estar sacramentado que o mundo é pra ser, sim, desse jeito louco e desleal. Essa engenhoca composta por países marcados pela peste e por concursos que premiam o cachorro mais fashion. Esse misto de habeas corpus pra quem rouba muito e algemas simbólicas pra quem paga o pato. Esse mosaico que massacra uma parcela e presenteia com caixinhas douradas recheadas de privilégios a outra.
E logo eu, que volta e meia recebo essas caixinhas, não aceito que seja assim. Não consigo, francamente, decifrar se viver do privilégio e rejeitá-lo é hipocrisia ou autocrítica. Mas há de haver no fim da linha a explicação para essa disparidade que nos torna aptos a elevar alguns ao pedestal de deuses e rebaixar outros ao patamar de lixo. Deve existir, escondida em algum canto, a justificativa para tanta crueldade alimentada pelo riso frouxo de quem segue incólume. Algum dia a gente há de entender por que existem as mesas fartas e a fome, a impunidade e as surras nos postes, as poltronas revestidas de couro e empáfia e as calçadas frias dos que têm os becos como lar. A gente ainda há de descobrir uma forma de diminuir esse contraste que nos coloca na rota da impiedade e vislumbrar o caminho para consertar os erros. Vai ver que o mundo foi criado pra ser mesmo essa gangorra que nos lança do abismo à redenção.