Se a lógica prevalecesse sobre os acasos da existência, o percurso para a formação de uma família seguiria um roteiro bem delineado. Duas pessoas livres, maduras e autônomas se encontrariam, construiriam um vínculo a partir de diálogos que transitam entre o essencial e o extravagante, compartilhariam gestos de afeto e, após consolidar o compromisso, ponderariam a possibilidade da parentalidade, que nem sempre se concretizaria. Contudo, na tessitura real da vida, o destino se impõe de forma imprevista, e quando a biologia não colabora ou as circunstâncias desviam o curso, o estado intervém para conectar aqueles que, por vias tortuosas ou não, buscam a realização de um laço genuíno, onde o que realmente importa não é o sangue compartilhado, mas a solidez dos sentimentos cultivados.
O passado de Paul e Wendy permanece um enigma em “Sem Rastros”, mas chega um ponto na narrativa em que a fragilidade da relação se revela com tal impacto que torna difícil conceber que um dia tenham sido plenamente felizes. Peter Facinelli constrói sua história apresentando-os primeiro como um casal sem falhas evidentes, viajando ao lado da filha para um retiro tranquilo em um parque de trailers no norte dos Estados Unidos. No entanto, a calmaria inicial é interrompida por um incidente que não apenas ameaça o presente, mas traz à tona segredos sepultados. Ao unir essas camadas, Facinelli demonstra ousadia no roteiro, ainda que as ideias ali contidas não tragam um frescor inovador ao gênero.
A empatia, mais do que um traço louvável, deveria ser cultivada como um exercício cotidiano, um antídoto contra a hostilidade que tantas vezes se manifesta sem causa legítima. Compreender o outro, oferecer um olhar gentil, uma palavra encorajadora, um gesto de reconhecimento, exige um esforço que pode parecer desproporcional ao retorno, mas que nos conduz a um entendimento mais profundo das circunstâncias humanas. Muitas vezes, aquilo que consideramos absurdo nada mais é do que o reflexo do trivial em uma outra perspectiva.
À medida que Facinelli aprofunda o dia a dia de Paul e Wendy, torna-se evidente que um episódio de grande gravidade marcou a trajetória do casal, por mais que se esforcem para sustentar uma aparência de normalidade. Instalados no local, Paul se depara com uma mulher de biquíni relaxando em uma banheira ao ar livre. Pequenos eventos como esse parecem aleatórios, mas na verdade pavimentam o caminho para o desaparecimento de Taylor, interpretada por Kk Heim. Como sugere o título, a menina some sem deixar rastros, e o filme se encarrega de explorar o que levou a esse ponto.
Enquanto adia a revelação central sobre a dinâmica entre Paul, Wendy e Taylor, o roteiro dedica seu segundo ato a uma investigação minuciosa. O xerife Baker, vivido por Jason Patric, assume a linha de frente da busca e alerta o casal sobre a presença de um foragido na região. A interpretação de Patric, na pele de um policial marcado por um passado de fracasso e atormentado pela culpa de não ter resgatado seu próprio filho sequestrado anos antes, adiciona mais uma camada de tensão à trama, obscurecendo ainda mais a verdade por trás do que realmente aconteceu.
Thomas Jane e Anne Heche entregam atuações corretas durante boa parte do filme, mas se destacam particularmente em um embate verbal intenso sobre o papel dos pais na proteção dos filhos, em que ressoam ecos do terror psicológico de “O Iluminado” (1980), de Stanley Kubrick. Embora compartilhe semelhanças com outros suspenses psicológicos, como “Sem Rastros” (2018), dirigido por Debra Granik, e “Fratura” (2019), de Brad Anderson, a obra de Facinelli possui um caráter próprio. No entanto, essa singularidade se revela aos poucos, exigindo do espectador um olhar atento e paciente.
★★★★★★★★★★