Robert Allen Zimmerman pode passar batido, mas Bob Dylan é uma estrela imorredoura. Abusado, folgazão, marrento, doce, sensível, humano, demasiado humano, Dylan chegou feito um meteoro à cultura pop, com a ressalva de que sua trajetória jamais soube o que é descer. Se conseguisse fazer com que velhos fãs tornassem a se apaixonar por seu ídolo, ou que novas plateias atentassem para o gênio de Dylan, “Um Completo Desconhecido” já teria cumprido um papel louvável. Entretanto, o filme de James Mangold vai muito além da mera lembrança, passa longe da hagiografia desonesta e amarra tudo numa narrativa orgânica, na qual nada é gratuito, técnica e arte amalgamam-se de modo sublime e o público viaja para um tempo em que até a guerra parecia menos ofensiva, menos degradante.
É essa a sensação ao cabo dos felizes 140 minutos com que Mangold regala o espectador, com música, poesia e beleza, precisamente como tem feito Dylan há 64 anos, desde que saiu de Duluth, Minnesota, no extremo norte dos Estados Unidos, e caiu na estrada rumo a Nova York, anti-Hamlet muito senhor do seu destino. Livremente inspirado por “Dylan Goes Electric! Newport, Seeger, Dylan, and the Night That Split the Sixties” (“Dylan fica elétrico! Newport, Seeger, Dylan e a noite que dividiu os anos 1960”, em tradução literal; 2015), as reminiscências mais distantes do bardo compiladas pelo jornalista Elijah Wald, esta adaptação cinematográfica das façanhas de uma das personalidades mais instigantes de todos os tempos pega o espectador pelo contrapé. Flagrei-me em muitas ocasiões sentindo escapar uma ou outra lágrima furtiva, ao passo que um riso espasmódico já se me esboçava no canto da boca, tentando acompanhar o torvelinho de emoções da vida extraordinária de um homem que se queria comum, mas que no fundo sempre teve consciência de que jamais passaria despercebido.
Sem dúvida, a chave da excelência de “Um Completo Desconhecido” é a performance absolutamente irretocável de Timotheé Chalamet — e raras vezes na história do Oscar alguém foi tão injustiçado. O roteiro de Mangold e Jay Cocks tem o condão de ir juntando uma a uma as várias figuras que surgiram pelo caminho acidentado de Dylan, a começar por Woody Guthrie (1912-1967), uma de suas maiores influências. Num hospital de Nova Jersey, Guthrie sucumbe a doença de Huntington, um mal neurológico que o mataria seis anos mais tarde, assistido por Pete Seeger (1919-2014), quando Dylan, com violão e gaita na bagagem, cai do azul e é convencido a apresentar seu repertório, curto e arrebatador, ao ídolo acamado. Naquela noite sombria de 1961, um garoto de vinte anos dá o primeiro passo de uma jornada longuíssima, muito menos glamorosa do que pintam-na certos fãs e detratores, e o diretor vai erigindo seu complexo perfil de Dylan apoiando-se em cenas que explicam a obstinação do músico por apuro estético sem prescindir do total domínio de cada nota, como se as canções fossem organismos autônomos, independentes de sua vontade, e fossem capazes de existir sem ele. Sua marca registrada.
Mangold contextualiza o enredo ao dispor de imagens reais de noticiários da época alertando sobre a escalada da Crise dos Mísseis de Cuba, em 16 de outubro de 1962. Nova-iorquinos fugiram do Armageddon e abandonaram a Grande Maçã à própria sorte, do dia para a noite Manhattan passara a ser um deserto de arranha-céus e asfalto, mas em inferninhos abaixo do nível da rua a boa música oferecia resistência, e obra-primas a exemplo de “Masters of War” são ouvidas pela primeira vez.
No palco de um deles está uma cantora de voz rascante, seduzindo a plateia com a melodia suave de “House of the Rising Sun” (1960), em que fala dos conflitos com a mãe, também receando que aquele pudesse ser o último show. Monica Barbaro imprime um providencial toque de classe e encanto a “Um Completo Desconhecido” com sua interpretação de Joan Baez, e a cena em que ela e Dylan beijam-se, numa óbvia alusão à máxima “Faça amor, não faça guerra” é puro lirismo. O filme registra a evolução do relacionamento dos dois, orgânico, desinteressado, livre das amarras do tal sistema, até Dylan mudar-se do sofá de Seeger e Toshi (1922-2013) para o apartamento de Baez. Mas havia espaço para mais alguém.
Chalamet começa a dar contornos mais ambíguos a Dylan, que frequenta a casa da nova namorada ao passo que envolve-se com a artista plástica Suze Rotolo (1943-2011), a mulher na capa de “The Freewheelin’ Bob Dylan’” (1963), o segundo disco. Dylan leva essa vida dupla até 1965, quando defende “It Ain’t me Babe” (1964) com Baez no Newport Folk Festival, em Rhode Island. Se a ficha de Rotolo — cujo nome é trocado para Sylvie Russo a pedido de Dylan — demora a cair, Johnny Cash (1932-2003), o autor de “It Ain’t me Babe”, via naquele garoto magricela de cabelos desgrenhados um parceiro eventual e um concorrente talentoso, polêmica que Mangold troca pela menção à entrada de instrumentos elétricos nas performances de Dylan, repudiada pela audiência e motivo de apupos fragorosos. O diretor prefere concentrar-se na amizade que Dylan e Cash efetivamente nutriram um pelo outro, traduzida em lances como a hilária manhã seguinte à memorável apresentação dos dois, quando o Cadillac do Homem de Preto barra a Triumph 500 de Bobby que, atônito, observa a imperícia do veterano ao manobrar o carro e amassar os veículos próximos.
Cada vez menos um menino bonito e mais e mais um dos melhores intérpretes da sua geração, como resta evidente em sua filmografia de mais de duas dezenas de ótimos trabalhos na tela grande, Chalamet torce “Um Completo Desconhecido” a seu gosto, decidindo por si só quando é o momento de apertar a rédea de seu Dylan ou deixá-la mais frouxa, embora o temperamento do biografado pareça mesmo o de alguém quase imune à opinião alheia. O ator passou os últimos cinco anos comparecendo a aulas de violão e voz, tudo para tocar e cantar sem o auxílio de dubladores ou, pior, da famigerada inteligência artificial. O elenco de apoio, a começar por Barbaro — que também disputou uma estatueta, a de Melhor Atriz Coadjuvante —, é um dos mais afinados desta safra, e ninguém fica indiferente ao vozeirão cavernoso de Boyd Holbrook na pele de Cash ou à ternura ingênua de Elle Fanning como Sylvie. O empenho de Chalamet, luminoso e brejeiro naquele conjunto amarelo manteiga da Givenchy, foi acintosamente ignorado pela Academia, mas ele vai rolando sobranceiro pela sua Highway 61. Como Bob Dylan continua a fazer.
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