O fascínio pelas vidas extraordinárias de artistas sempre alimentou a indústria cinematográfica, mas poucos filmes conseguem transcender a armadilha de transformar a arte em mero adereço das turbulências biográficas. “Frida”, dirigido por Julie Taymor, escapa parcialmente dessa tendência graças à forma cuidadosa com que a diretora equilibra drama pessoal, criatividade artística e a complexidade da personagem central. Ao explorar a trajetória de Frida Kahlo (Salma Hayek), Taymor enfrenta um desafio delicado: apresentar a artista não apenas como vítima das circunstâncias trágicas de sua vida, mas como uma mulher determinada a transformar dor e sofrimento em expressão criativa autêntica. Ainda que algumas críticas apontem a superficialidade das cinebiografias sobre pintores, “Frida” busca ativamente evitar tal reducionismo, apesar das inevitáveis simplificações narrativas impostas pelo gênero.
Desde o início, o filme esclarece que Frida e Diego Rivera (Alfred Molina) rejeitam deliberadamente a moral burguesa convencional, preferindo uma relação permeada por contradições. Embora definam a fidelidade sexual como algo dispensável, exigem um do outro um tipo peculiar de lealdade emocional. Essa dinâmica, retratada de forma honesta e sem julgamentos morais fáceis, gera uma tensão permanente: ambos aceitam suas próprias liberdades, mas se ressentem profundamente quando confrontados pelas do parceiro. Assim, o filme amplia a abordagem usual ao não apresentar a relação como mero pano de fundo, mas como motor essencial que molda a identidade artística e pessoal dos protagonistas. O roteiro, resultado de esforços coletivos — incluindo participações não creditadas de Edward Norton —, reflete claramente essa tensão, embora algumas passagens possam parecer episódicas ou fragmentadas demais, como uma sucessão acelerada de eventos.
Uma das maiores forças de “Frida” está justamente na interpretação cuidadosa e contida de Salma Hayek. Ao invés de apelar para momentos dramáticos fáceis, Hayek escolhe um caminho mais difícil, mantendo um rigor interpretativo que evita exageros melodramáticos mesmo nas cenas mais impactantes, como a do acidente que quase matou Kahlo em sua juventude. Nesta sequência, Taymor emprega técnicas visuais ligadas ao realismo mágico para simbolizar a maneira como Frida usou a arte para sublimar seu sofrimento. Aqui, o filme rompe brevemente a fronteira entre realidade e imaginação, sugerindo que, para Frida, criar não era apenas um ato expressivo, mas uma necessidade existencial profunda, algo que se reflete de maneira tocante em sua relação com Diego, cujas obras monumentais frequentemente eclipsaram as dela, mais intimistas e introspectivas.
Ainda assim, filmes sobre artistas enfrentam limitações inevitáveis, decorrentes das diferenças fundamentais entre assistir cinema e contemplar pintura. Enquanto uma tela oferece múltiplos pontos de vista e uma experiência livre e individual, a tela do cinema necessariamente delimita e condiciona a percepção do espectador. Por isso, o filme “Frida” opta sabiamente por privilegiar não apenas as obras da artista, mas também o contexto emocional e histórico em que foram produzidas, incluindo sua relação com figuras como Trotsky e Josephine Baker. Isso, entretanto, implica uma escolha delicada: a obra cinematográfica corre o risco constante de simplificar a riqueza e complexidade da verdadeira Frida Kahlo, limitando-a a episódios de fácil absorção dramática.
Taymor, conhecida pela audácia visual em trabalhos como a adaptação teatral de “O Rei Leão” e o filme “Titus” (1999), escolhe em “Frida” uma abordagem mais moderada, equilibrando sequências estilizadas com uma narrativa tradicionalmente biográfica. Os fãs de sua estética ousada talvez sintam falta de uma inventividade mais radical, mas o resultado permite um olhar coerente e acessível à vida da artista mexicana, valorizando sua conexão visceral entre vida e obra. Esse aspecto torna-se especialmente relevante ao apresentar os episódios finais da vida da artista: Frida, já gravemente enferma, insiste em ser transportada, ainda deitada em sua cama, para a inauguração de sua única exposição individual realizada no México em 1953, transformando sua própria condição física deteriorada em um derradeiro ato artístico, ao mesmo tempo poderoso e trágico.
Se a cinebiografia tradicional falha em capturar plenamente a complexidade das obras de pintores como Gauguin em “O Lobo à Porta” ou Van Gogh em “Sede de Viver”, é porque elas frequentemente reduzem a arte a uma espécie de consequência da vida, invertendo as prioridades da criação artística. No entanto, “Frida” tenta escapar dessa lógica. Ao revelar como arte e vida estavam entrelaçadas na existência de Kahlo, o filme demonstra uma compreensão rara do que significa criar sob constante sofrimento físico e emocional. A cena em que Rivera desafia Nelson Rockefeller, inserindo Lenin num mural destinado ao Rockefeller Center — resultando na destruição da obra — evidencia não apenas as diferenças políticas e filosóficas, mas também reforça que para Diego e Frida, viver e criar eram atos inseparáveis de rebeldia contra qualquer forma de limitação ou censura.
O elenco secundário apresenta desempenhos irregulares que nem sempre conseguem acompanhar o nível estabelecido por Hayek e Molina. Valeria Golino oferece uma atuação convincente como Lupe, primeira esposa de Rivera, enquanto participações pontuais de Antonio Banderas e Ashley Judd soam mais como distrações do que complementos ao núcleo dramático. Ainda assim, tais falhas não comprometem a integridade geral do filme, que mantém o espectador envolvido até o desfecho, uma conclusão que transcende o mero resumo biográfico ao transformar a própria morte em um ato simbólico e artístico de resistência.
Dessa maneira, ainda que apresente limitações intrínsecas ao gênero, “Frida” constitui um esforço cinematográfico consistente e sofisticado, capaz de estimular a reflexão sobre o papel da imagem na cultura visual contemporânea. Enquanto esperamos pelo dia em que a televisão pare de transformar imagens triviais em fatos espetaculares, o cinema continuará buscando nas trajetórias de artistas como Frida Kahlo uma tentativa de capturar algo genuinamente significativo sobre o conflito eterno entre criação, dor e transcendência. Mesmo diante da inevitável simplificação imposta pelo formato biográfico, “Frida” nos convida a contemplar a difícil, mas necessária, união entre a fragilidade da vida e a permanência transformadora da arte.
★★★★★★★★★★