O filme que deu o primeiro Oscar a Adrien Brody está na Netflix Divulgação / Focus Features

O filme que deu o primeiro Oscar a Adrien Brody está na Netflix

Existem filmes capazes de ultrapassar os limites da simples experiência visual e se estabelecer como testemunhos definitivos de nossa fragilidade existencial. Em “O Pianista”, Roman Polanski conduz o espectador para além do conforto passivo da poltrona, confrontando-o diretamente com a angústia silenciosa daqueles que, diante de uma tragédia sem precedentes, descobriram que a sobrevivência não depende somente de coragem, mas sobretudo de uma combinação arbitrária e cruel de sorte e circunstância. Ao adaptar a autobiografia proibida do pianista polonês Wladyslaw Szpilman, Polanski não apenas remexe em suas próprias feridas abertas pelo Holocausto, mas também expõe, com rigor crítico e precisão histórica, a vulnerabilidade das certezas humanas frente ao absurdo.

O filme evita, com determinação consciente, a grandiloquência típica das narrativas sobre a Segunda Guerra Mundial. Em vez disso, ele nos posiciona diretamente na perspectiva de Szpilman, brilhantemente interpretado por Adrien Brody. Acompanhamos com impotência crescente a transformação do protagonista de homem talentoso e respeitado num indivíduo gradualmente desumanizado, subjugado pela fome, medo e solidão. O espectador é mergulhado em um processo lento e doloroso, em que pequenas perdas cotidianas acumulam-se em uma devastação psicológica absoluta. A estratégia adotada por Polanski é precisamente essa: capturar a angústia não por grandes gestos, mas pela meticulosa erosão da dignidade cotidiana, como no momento em que os judeus são forçados a usar braçadeiras com a estrela de Davi — uma humilhação burocrática, cuja banalidade amplifica ainda mais sua violência simbólica.

Nesse sentido, “O Pianista” articula-se como uma antítese consciente ao heroísmo convencional das grandes produções cinematográficas sobre o Holocausto, como “A Lista de Schindler”. Não há heróis ou mártires idealizados aqui; apenas pessoas comuns tentando sobreviver um dia após o outro, numa sucessão de eventos desumanos cujo absurdo cresce a cada cena. O próprio Szpilman nunca é apresentado como alguém especialmente corajoso ou moralmente superior. Pelo contrário: Polanski ressalta deliberadamente que sua sobrevivência depende quase exclusivamente de atos ocasionais de compaixão praticados por estranhos, entre eles um oficial alemão, cuja inesperada empatia desmonta a lógica simplista e maniqueísta frequentemente usada para interpretar aquele período histórico.

Além de uma profunda introspecção pessoal, o filme dialoga criticamente com a herança cinematográfica polonesa, país cujo cinema se consolidou por um compromisso com a provocação intelectual e questionamento das narrativas oficiais. Andrzej Wajda e Krzysztof Kieslowski, por exemplo, são nomes reconhecidos exatamente por desafiarem a visão institucionalizada da história polonesa, mostrando que a realidade, especialmente durante períodos traumáticos, raramente se encaixa em narrativas simplificadoras. Polanski dá continuidade a essa tradição ao negar-se a oferecer respostas fáceis ou catarse emocional artificial, preferindo aprofundar-se nas contradições internas do comportamento humano diante de atrocidades inimagináveis. Nesse processo, o diretor expõe suas próprias experiências, como sua fuga infantil das cercas de arame farpado de Auschwitz, criando assim uma narrativa pessoal, ainda que histórica, carregada de autenticidade e densidade emocional genuínas.

O uso consciente da música no filme reforça ainda mais a complexidade emocional da narrativa. Chopin, com suas composições marcadas por melancolia e profundidade sentimental, surge como símbolo da identidade polonesa ameaçada pela brutalidade da ocupação nazista. Szpilman, ao encontrar um piano intacto entre as ruínas da cidade devastada, opta por não tocá-lo, decisão aparentemente ilógica, mas profundamente significativa. Essa recusa representa não só a impossibilidade do retorno à normalidade anterior, mas também uma metáfora sobre a inadequação da arte diante da barbárie absoluta. Aqui, a genialidade artística não serve como escudo contra a brutalidade humana; ela apenas evidencia ainda mais a impotência de toda expressão cultural perante o horror.

Adrien Brody constrói um personagem profundamente humano, cuja transformação física e psicológica vai além da simples interpretação dramática. Em sua atuação, gestos sutis, expressões mínimas e silêncios prolongados dizem muito mais do que qualquer discurso inflamado poderia expressar. Quando ele finalmente se encontra frente a frente com o oficial alemão Wilm Hosenfeld, interpretado com notável sutileza por Thomas Kretschmann, a cena transforma-se num poderoso comentário sobre as fronteiras morais, sempre borradas, entre vítima e algoz. Não é um encontro heroico, mas uma colisão acidental de humanidades distintas em circunstâncias aberrantes, revelando a complexidade insuportável das relações humanas em tempos extremos.

Ao evitar o sentimentalismo óbvio e a dramatização previsível, Polanski estabelece um pacto silencioso com o espectador: trata-se de um convite para refletir sobre a natureza precária e fortuita da existência humana, especialmente em contextos históricos devastadores como o do Holocausto. A sobriedade de sua abordagem evita qualquer sensação ilusória de triunfo, lembrando-nos continuamente que aqueles que sobreviveram o fizeram quase sempre às custas da perda irreparável de tudo o que lhes era caro. É precisamente esse desconforto intelectual e emocional provocado pelo filme que o torna excepcionalmente poderoso.

“O Pianista” não permite conclusões simplistas, pois a sobrevivência nunca é apresentada como uma vitória moral, mas como um testemunho amargo e silencioso da fragilidade do humano diante da história. Ao insistir em mostrar a sorte como elemento central e determinante da sobrevivência, Polanski desfaz mitos confortáveis e confronta diretamente nossa necessidade instintiva por explicações racionais e narrativas heroicas diante de tragédias. Resta ao espectador, ao final, não uma sensação de alívio ou triunfo, mas um incômodo profundo, derivado da constatação de que, na maior parte das vezes, a sobrevivência é um acidente inexplicável em meio ao caos absoluto. É nesse reconhecimento doloroso e inquietante que reside a verdadeira força duradoura de um filme como este, capaz de nos deixar questionamentos incômodos muito depois do silêncio final das teclas do piano.

Filme: O Pianista
Diretor: Roman Polanski
Ano: 2003
Gênero: Drama/Épico/Guerra
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★