Desafiar a maneira como o cinema representa conflitos armados exige equilíbrio entre denúncia e narrativa. “Número 24” levanta esse debate ao explorar as contradições de retratar a brutalidade da guerra sem incorrer na armadilha de glorificá-la. Se por um lado algumas produções inflam paixões extremistas ao romantizar o derramamento de sangue, outras buscam evitar que os erros do passado se repitam.
No entanto, mesmo as que se propõem a condenar confrontos bélicos podem acabar reforçando discursos que perpetuam a violência. Dentro dessa complexidade, John Andreas Andersen se inspira na trajetória de Gunnar Sønsteby, figura central da resistência norueguesa na Segunda Guerra Mundial. Em vez de oferecer respostas fáceis, a obra incentiva reflexões sobre heroísmo, dever patriótico e dilemas morais que ultrapassam os campos de batalha.
A narrativa se inicia com Sønsteby já idoso (interpretado por Erik Hivju), prestes a compartilhar suas memórias com um grupo de estudantes na cidade de Rjukan. Adotando uma abordagem quase documental, a câmera captura seu nervosismo ao mastigar um pedaço de madeira, sinal de que revisitar o passado exige coragem emocional. Suas palavras transportam o público para o final dos anos 1930, quando um jovem Gunnar (Sjur Vatne Brean) ingressa discretamente na resistência norueguesa. O contraste entre sua rotina aparentemente pacata e a escalada de tensões, simbolizada por livros queimados por simpatizantes nazistas, prenuncia sua transformação em uma peça-chave na luta contra a ocupação. Ao seu lado está Erling Solheim (Jakob Maanum Trulsen), cuja relutância em encarar a ameaça iminente adiciona uma camada de ambiguidade ao enredo.
Ao adotar o codinome “Número 24”, Gunnar assume um papel cada vez mais arriscado. Inicialmente redigindo panfletos contrários ao regime nazista, logo se vê envolvido em operações militares, atentados e missões de sabotagem. Diferente dos tradicionais protagonistas carismáticos de filmes de guerra, Sønsteby é retratado como um homem cuja persistência silenciosa supera a ausência de discursos inflamados ou gestos grandiosos.
Andersen, que já comandou produções como “Mar do Norte” e “Terremoto”, demonstra domínio técnico na condução de sequências eletrizantes, onde explosões e perseguições se alternam com momentos de tensão psicológica. Apesar do ritmo dinâmico, a narrativa não negligencia os dilemas morais que acompanham as escolhas do protagonista, especialmente ao liderar execuções de noruegueses alinhados ao regime nazista, incluindo Karl Marthinsen e o próprio Erling Solheim.
O momento decisivo ocorre quando a interação entre Sønsteby e os estudantes transcende o caráter expositivo e assume um tom de embate moral. Os jovens não apenas questionam o uso da força na luta contra a tirania, mas também confrontam o veterano sobre as consequências de suas ações. Um dos alunos revela que familiares seus foram mortos em 1945 por operações lideradas por Gunnar, exigindo dele um reconhecimento público dessas perdas.
Esse instante transforma “Número 24” em algo muito além de uma mera narrativa sobre resistência e se torna um estudo sobre o peso das escolhas individuais. A colisão entre convicções e arrependimentos culmina no trecho mais impactante do longa. Para amplificar essa atmosfera carregada, Andersen toma a ousada decisão de inserir “Exit Music (For a Film)”, do Radiohead, em uma das cenas mais tensas, provocando discussões sobre a pertinência dessa escolha estilística dentro de um contexto histórico.
Apesar de grande parte do filme seguir a estrutura típica de histórias de espionagem e sabotagem — com infiltrações, disfarces e ataques estratégicos —, o clímax desafia a idealização simplista do protagonista. O roteiro descarta a perspectiva do herói infalível e expõe as repercussões de seus atos, revelando um homem marcado pelo peso das vidas que ajudou a eliminar. Ao evitar a armadilha de transformar Gunnar em uma figura santificada, Andersen confere nuances raras a um filme biográfico, permitindo que incertezas e arrependimentos dividam espaço com atos de bravura. O ápice do longa não está nas cenas de combate, mas no enfrentamento dialógico do último ato, que sustenta uma carga dramática superior a qualquer momento de ação.
A reconstrução da Noruega ocupada se beneficia de um design de produção meticuloso, com figurinos e cenários que evocam a atmosfera opressora da década de 1940. A trilha sonora e a fotografia reforçam a sensação de incerteza e perigo constante, enquanto o elenco se destaca ao conferir credibilidade às complexas relações humanas que permeiam a narrativa. Sjur Vatne Brean imprime a Gunnar um equilíbrio entre determinação e tormento interno, enquanto Erik Hivju e Flo Fagerli se sobressaem nos confrontos verbais que sustentam a espinha dorsal do filme. A troca de falas entre os dois remete à intensidade de um drama de tribunal, sugerindo que a essência da história poderia se manter intacta mesmo sem as cenas de ação.
Ao encerrar a jornada de Gunnar Sønsteby, “Número 24” se debruça sobre um dilema inescapável: o que diferencia um combatente da opressão de alguém que perpetua a violência em nome de um ideal? Enquanto alguns enxergam na narrativa um lembrete de que a guerra jamais deve ser romantizada, outros questionam sua pertinência em um mundo que ainda enfrenta conflitos semelhantes.
A recepção ambivalente do filme reflete seu compromisso com a complexidade, evitando respostas prontas e estimulando reflexões sobre as fronteiras entre heroísmo e brutalidade. Se a intensidade do debate parecer excessiva, cabe ao espectador decidir até que ponto deseja seguir essa jornada. Afinal, em tempos de crise, a linha que separa vencedor e vencido é mais frágil do que se imagina.
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