Em 1989, Dominic Toretto enfrentava aquele que julgava ser o momento decisivo para redefinir sua trajetória no mundo das corridas. O palco era propício para sua consagração, mas o acaso, sempre indiferente às expectativas humanas, preparava-lhe uma armadilha sutil: óleo espalhado na segunda curva, a sombra do carro número 23 avançando em seu retrovisor e o retorno inesperado de Kenny Linder, adversário conhecido pelas antigas rivalidades. Aquele instante decisivo revelava muito mais do que uma possível derrota nas pistas; era uma metáfora potente da fragilidade das certezas humanas diante das imprevisibilidades que o destino costuma impor.
Quase três décadas se passaram, e Dominic Toretto retorna em “Velozes e Furiosos 8”, oitava parte de uma franquia cuja longevidade parece desafiar não apenas o tempo, mas a própria lógica cinematográfica. O título original, “The Fate of the Furious”, carrega uma sutileza reveladora: sugere que o destino da série é abraçar certa maturidade narrativa, mesmo sem renunciar à imprudência juvenil e ao espetáculo absurdo que a consagraram. Sob a batuta do diretor F. Gary Gray, que acabava de ser aclamado pelo sucesso do drama musical “Straight Outta Compton: A História do N.W.A.” (2015), a produção tenta equilibrar-se entre a busca por uma narrativa minimamente coesa e o compromisso irrestrito com a insanidade visual e o entretenimento assumidamente superficial.
A trama, aparentemente cansada dos próprios clichês, sugere que Toretto está esgotado pelo discurso reiterativo sobre o valor da “família”, palavra que, outrora carregada de significado emocional, soa agora como um mantra obrigatório, repetido por roteiristas sem inspiração genuína. É nesse contexto que surge a personagem Cipher, encarnada por Charlize Theron com uma combinação perturbadora de frieza calculista e sedução ambígua, atraindo Dom para longe da segurança moral e emocional de seu grupo. Essa aliança inesperada proporciona uma interessante tensão dramática, oferecendo ao protagonista uma falsa sensação de liberdade em meio ao isolamento. Ao mesmo tempo, abre espaço para um debate implícito sobre até que ponto o conceito tão repetido de família ainda ressoa como verdadeiro, ou se já se tornou um mero recurso narrativo desgastado.
Gray conduz a narrativa ao ritmo de sequências de ação espetaculares, meticulosamente planejadas para desafiar qualquer lei natural ou expectativa razoável. Automóveis desabam dos céus nova-iorquinos como chuvas tecnológicas e submarinos emergem sob camadas de gelo siberiano em manobras que seriam inaceitáveis se a franquia não tivesse assumido há tempos seu compromisso irrestrito com o absurdo. Vin Diesel e seu elenco multicultural exibem notável destreza física, engajando-se em cenas que demandam não só preparo atlético, mas também uma habilidade peculiar de entregar diálogos que transitam entre o dramático e o ironicamente autoconsciente, uma dinâmica difícil que nem sempre é bem-sucedida, mas que confere ao filme um charme paradoxal e irresistível.
Por trás dessa aparente leviandade cinematográfica reside uma estratégia inteligente e proposital dos produtores. Eles compreendem perfeitamente que o sucesso da franquia não reside em diálogos filosóficos ou roteiros intricados, mas precisamente na capacidade de transformar o absurdo em entretenimento genuíno, sem jamais cair em pretensões artísticas infundadas. Contudo, mesmo essa fórmula bem-sucedida começa a demonstrar fadiga evidente após quase duas décadas de exageros narrativos, especialmente perceptível pela ausência da vivacidade e do dinamismo proporcionados pelo diretor anterior, Justin Lin. Com Gray, apesar da competência técnica, as sequências de ação parecem sofrer um desgaste mais acelerado, revelando aos espectadores mais atentos sinais claros de repetição e falta de frescor.
Ainda assim, é preciso reconhecer que “Velozes e Furiosos 8” alcança seu objetivo primordial: mantém-se como entretenimento legítimo, plenamente autoconsciente de sua identidade e propósito. Mesmo que a franquia comece a se aproximar perigosamente da saturação, o fechamento no alto de um prédio em Nova York — reunindo Dom, Letty e seus companheiros — ainda desperta uma satisfação genuína. Não pela promessa de inovações futuras (que parecem improváveis), mas justamente por reafirmar a cumplicidade do público com personagens cujas trajetórias, por mais implausíveis que sejam, continuam emocionalmente efetivas.
Talvez seja exatamente esse o maior paradoxo e o grande mérito dessa franquia improvável: ela assume orgulhosamente sua incoerência lógica e dramática, desafiando permanentemente o bom senso cinematográfico e explorando, sem qualquer constrangimento, os limites extremos do espetáculo visual. Ao fazê-lo, oferece uma experiência singular e intrigante: a consciência plena de sua superficialidade convertida em uma forma rara e peculiar de sofisticação narrativa, onde o absurdo se torna arte por sua própria audácia e transparência.
★★★★★★★★★★