A beleza assume muitas formas. Há aquela que deslumbra pelo excesso, opulência de formas e núcleos, exaltação do sensível. Mas há uma beleza seca, austera, que não se impõe pelo fulgor, mas pela estrutura irrepreensível. A primeira encanta pelo impacto, a segunda, pelo rigor. O mundo se divide entre aqueles que sucumbem ao esplendor imediato e aqueles que compreendem a beleza como um trabalho de escavação, busca pelo essencial.
Se a beleza se realiza no olhar do espectador, a inteligência é a mais alta expressão desse olhar. Nada mais fascinante do que uma mente que se move com liberdade e precisão, constrói e desmonta conceitos com a serenidade de quem sabe que a verdade não se impõe pela força, mas pela evidência. Há, na pura inteligência, um esplendor que dispensa ornamentos. Entre os muitos encantos do saber, poucos são tão sedutores quanto essa clara luz que nasce da articulação rigorosa do pensamento.
Por razões distintas e surpreendentemente próximas, João Cabral de Melo Neto e Tomás de Aquino me fascinam. Ambos edificam com o mínimo, eliminam o supérfluo, examinam o pensamento até o essencial. João Cabral faz da poesia um exercício de exatidão, como se cada verso fosse uma peça ajustada a uma engrenagem maior. Tomás compõe a sua “Suma Teológica” como um arquiteto da razão, em que cada artigo, cada argumento, se enquadra numa estrutura, sem excessos ou fragilidades. Ambos desprezam o ornamento gratuito. Ambos determinam a força da ideia nua.
A leitura de Tomás de Aquino, para além do interesse filosófico e teológico, é um exercício de humildade. Se o catolicismo me foi uma herança cultural e espiritual, a “Suma Teológica” tornou-se uma lição de grandeza intelectual. Há gênios em muitos campos, mas a genialidade da ópera de Tomás está em uma escala diferente, quase sobre-humana. Ele não é apenas um pensador sistemático, mas um organizador da verdade, alguém que construiu com a paciência de um mestre de obras e as conclusões de um matemático.
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Somente Shakespeare rivaliza com Aquino em sabedoria. Mas Shakespeare é o caos ordenado, o instinto polifônico da inteligência literária. Tomás é a serenidade geométrica da razão. Diante dele, Montaigne parece um diletante espirituoso, sempre hesitante, sempre investigando sem nunca chegar a um atributo ou definição. Mesmo Proust, com sua fenomenologia do tempo e do desejo, soa inseguro frente à solidez de Aquino. Há uma robustez em Tomás que torna todos os outros — exceto Shakespeare e Dante — efêmeros, menores.
Minha primeira leitura de Tomás foi fragmentária, dispersa, marcada pela curiosidade de estudante. Eu cursava História na Universidade Federal de Goiás e passava tardes na biblioteca, folheando a “Suma” sem método, tentando decifrar sua lógica interna. Não era um estudo, só um assombro diante da apresentação de seu pensamento. Cada questão era um mundo em si, e as respostas, lições de rigor e lucidez. Eu não sabia que essa leitura provisória se tornaria uma obsessão permanente.
Anos depois, morando em São Paulo, fiz um curso no Museu de Arte Sacra, na Avenida Tiradentes, dedicado à leitura de Tomás de Aquino. Ali percorri a “Suma Teológica” de forma integral, sistemática, orientado por especialistas religiosos e leigos. Usei a irreparável publicação bilíngue das Edições Loyola, definitiva em português, traduzida com precisão e cuidado. Foi uma experiência de imersão intelectual e espiritual, um contato direto com o que há de mais elevado na inteligência humana.
Havia algo de paradoxal naquela leitura: a segurança do texto, a inabalável razão, como se cada conceito estivesse no lugar exato, sem nada que pudesse ser dito de outro modo. Na outra ponta da corda, a consciência de que compreender Tomás é um trabalho infinito, uma escalada sem cume. Sua lógica é acessível, mas sua profundidade é vertiginosa. Se o primeiro contato com a “Suma” é o de um leitor que entende, os anos mostram que o entendimento está sempre em devir e nunca se esgota.
Há alguns meses, diante de respostas positivas que recebi de alguns leitores por conta de ensaios sobre livros basilares da cultura ocidental, que publico rotineiramente na Revista Bula, decidi que deveria organizar essa experiência tomista, transformar a minha leitura, anotações e fichamentos em um guia. Já havia feito algo semelhante com “Guerra e Paz” e “Em Busca do Tempo Perdido”, este último publicado em livro sob o título de “Dicionário Proust: As Personagens de ‘Em Busca do Tempo Perdido’” — trabalhos cuja intenção é encorajar e orientar a primeira leitura de um leitor não especializado no enfrentamento das maiores obras da cultura ocidental. E me ocorreu que Tomás de Aquino, talvez — ou certamente — a mente mais poderosa da História do Ocidente, merecia o mesmo esforço. O conhecimento não deve ser apenas uma posse, mas uma transmissão. A “Suma Teológica” não é monumento do passado; é obra viva, exige leitores interessados em segui-la na caminhada para o conhecimento.
Diferente de Tolstói e Proust, cujas grandezas residem na captação do fluxo da vida e da sociedade, Aquino opera em uma dimensão mais essencial: a verdade pura, sem intermediações da subjetividade. Não se trata de um conhecimento para a contemplação estética. É sobre um saber que modifica, reordena a mente e o espírito. Há algo de pedagógico na “Suma”, não no sentido escolar, mas no aspecto de uma formação da inteligência. Ler Aquino é (re)organizar a forma de pensar.
Mas não é só de Proust e de Tolstói que me lembro ao ler Tomás de Aquino. James Joyce, meu herói literário, também me vem à cabeça. Se Proust construiu uma catedral sensorial, onde o tempo se expande e se dissolve como incenso, Joyce ergue várias homenagens, no conteúdo e na forma, ao mais sábio dos homens. Há algo de profundamente tomista na estrutura do episódio “Ithaca”, de “Ulysses”. Inteiramente composto no formato de perguntas e respostas, ele ecoa a arquitetura racional da “Suma Teológica”, em que cada questão se debate metodologicamente, refutando objeções, delineando conceitos e conduzindo o leitor por um labirinto ordenado de raciocínio. Joyce, que nunca escondeu sua admiração e filiação a Tomás de Aquino, faz uma referência e homenagem, transforma a técnica escolástica em um dispositivo narrativo, conferindo ao capítulo uma impassibilidade quase mecânica, onde a frieza do método se choca ironicamente com a desordem interior de Bloom e de Stephen Dedalus. É um tributo inesperado: a forma, que em Tomás é o caminho para a verdade, em Joyce se desdobra em paródia e desconstrução, mas mantém a marca de sua origem: a inteligência absoluta como motor do pensamento.
A presença de Tomás em Joyce não se restringe à estrutura narrativa de “Ulysses”. Em “Retrato do Artista Quando Jovem”, Joyce invoca diretamente a estética tomista, inserindo sua concepção de beleza como unidade, harmonia e clareza no célebre debate de Stephen Dedalus sobre arte, em que o personagem alter ego de Joyce cita o nome e as ideias de Tomás na defesa de suas teses. A teoria da “integritas, consonantia e claritas”, tomada de empréstimo à filosofia de Aquino, torna-se ali um dos eixos da argumentação do protagonista, que busca articular sua visão sobre o que faz uma obra ser bela e verdadeira. É fascinante perceber como Joyce, um escritor que renegou os dogmas e a Igreja, apoiava-se na solidez do maior arquiteto da razão cristã. Se há um eco de Tomás na modernidade, ele ressoa até nos autores que parecem distantes dele, como se a inteligência, ao ser lançada ao mundo, sempre sobrevivesse em formas inesperadas.
Quando entrei na faculdade de História, fui tomado por um impulso quase apaixonado de ceticismo. A academia, com seu verniz racionalista, ênfase na crítica incessante e aversão a qualquer ideia que cheirasse a dogma, parecia terreno fértil para o abandono da fé. O cristianismo, que até então fora uma presença natural em minha vida, começou a me parecer uma construção histórica, aspecto cultural mais do que uma verdade. O ateísmo insinuava-se como uma alternativa intelectualmente tentadora, como se duvidar, questionar e contestar fossem estágios superiores ao simples crer.
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O que me afastou da fé não foi um ressentimento pessoal contra Deus, nem uma experiência traumática com a religião, mas a sensação de que acreditar em Deus era um salto irracional, um ato de engenhosidade quixotesca. Eu queria pensar de forma rigorosa, fundamentada, sem me deixar levar por narrativas que apelassem ao sentimento. Anos depois, ironicamente, Tomás de Aquino, o maior teólogo da Igreja, apareceu como o antídoto para o ceticismo. Longe de ser um apóstolo do fideísmo ou um defensor da fé cega, Tomás me apresentou algo que eu não esperava encontrar: a possibilidade de crer com inteligência, submeter a fé ao mais alto escrutínio da razão e sair fortalecido.
O primeiro choque veio com as “Cinco vias”. Eu esperava encontrar justificativas dogmáticas para a existência de Deus, mas o que encontrei foram resultados impecavelmente lógicos, construídos com a precisão de uma geometria. A ideia de que Deus não era apenas um conceito imposto pela tradição, mas uma necessidade racional, foi um golpe contra o ateísmo que eu havia cultivado. As provas tomistas não são planejadas com fé prévia; pelo contrário, elas partem da experiência sensível, do movimento do mundo, da ordem natural das coisas. Não houve ali apelos emocionais, apenas razão estruturada, luminosa em sua coerência.
Ao longo dos anos, percebi que meu flerte com o ateísmo não era uma busca pela verdade, mas uma capitulação ao espírito da época, desejo de conformidade com o meio acadêmico. Tomás me resgatou do erro não com promessas de transcendência ou consolos metafísicos, mas com o rigor da lógica. Ele me ensinou que o verdadeiro intelectual não é o que duvida por hábito, mas o que busca compreender. Que a inteligência não é inimiga da fé, mas sua aliada poderosa. A “Suma Teológica” não apenas me reconduziu ao cristianismo; ela me mostrou que a razão pode ser um caminho seguro para Deus.
Hoje, ao olhar para trás, vejo que Tomás não apenas me devolveu a fé, mas me tornou um católico melhor: não um que aceita passivamente, mas um que compreende e questiona, sem medo de onde a verdade possa levar. Seu pensamento me ensinou que Deus não precisa ser defendido com irracionalidade ou fanatismo, mas simplesmente exposto, como a verdade evidente que é. Em vez de encontrar na História uma justificativa para abandonar a fé, encontrei em Aquino um convite para aprofundá-la com a mais bela e poderosa das faculdades humanas: a inteligência.
Por que Tomás de Aquino é considerado o mais sábio dos santos e o mais santo dos sábios? Talvez porque poucos homens na história tenham reunido em si a serenidade da fé e o rigor da razão com tamanha harmonia. Desde a encíclica “Aeterni Patris”, do Papa Leão 13, em 1879, Santo Tomás tornou-se o pilar da filosofia e da teologia cristã. Leão 13 defende que a filosofia tomista é a mais adequada para a formação do pensamento católico e deve ser a base da educação eclesiástica e teológica. Tomás é mais do que teologia: não apenas um mestre da especulação metafísica, mas um organizador do pensamento humano, construiu um edifício racional onde fé e inteligência não se opõem. Séculos depois, no Concílio Vaticano 2, sua obra foi reafirmada como estratégia segura para todos os que desejam compreender a inteligência católica. No Concílio, o pensamento de Aquino continua a ser uma referência central, mas com uma abordagem mais aberta e dialógica em relação às correntes filosóficas e teológicas contemporâneas. Diferentemente de “Aeterni Patris”, que afirmava o tomismo como fundamento exclusivo da filosofia cristã, os documentos conciliares confirmam sua importância, mas não o impõem de maneira absoluta, ainda assim, fundamental.
A grandiosidade de Tomás se manifesta em sua riqueza entre a especulação e o rigor lógico. Não há em sua obra traços de sentimentalismo ou desordem, nem paixão cega, nem concessões ao irracionalismo. A fé, para ele, não é um salto no desconhecido, mas uma resposta ordenada à luz da razão. Deus nos deu a faculdade natural de pensar e a graça sobrenatural de crer. Uma não pode invalidar a outra. Como ensina o Evangelho: “Sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas”. Tomás encarna essa dualidade: a mansidão de quem confia e a argúcia de quem examina.
Não há santo mais racional do que ele. Sua piedade não se traduz em êxtases ou visões, mas na humildade de quem se submete à verdade. Sua adesão à revelação e ao magistério da Igreja não é passiva, mas ativa, crítica e construtiva. Ele não recebe a tradição como um peso morto, mas como um convite ao pensamento. A verdade não é apenas aceita, mas examinada, perscrutada, desdobrada em suas implicações mais profundas. Sua inteligência é um instrumento de serviço, um meio para ordenar a realidade e iluminar o intelecto humano.
Seus escritos são a prova desse espírito. A “Suma Teológica” não é um tratado qualquer, mas uma catedral tão grande quanto a proustiana, mas não das sensações, e sim do pensamento, onde cada questão é um pilar e cada argumento, uma abóbada que sustenta a estrutura do raciocínio. Suma não significa resumo, mas reunião, convergência, unidade. Tudo está ali: Deus, o homem, a criação, a moral, a redenção. O Alfa e o Ômega, a origem e o destino, o fundamento e a especificidade.
A divisão da “Suma” reflete essa totalidade. A parte 1 trata de Deus: sua unicidade, seus atributos, sua trindade, a criação do mundo e a relação entre Criador e criatura. A parte 2 é dedicada ao homem: sua natureza, suas virtudes, sua orientação ao bem, suas escolhas morais e o caminho que o conduz ao seu fim último. A parte 3 trata da encarnação e da redenção: Cristo como ponte entre o humano e o divino, como a propriedade perfeita entre ser e verdade. Não há na filosofia ocidental outro sistema tão ordenado, rigoroso, majestoso na sua amplitude e profundidade.
Mas Tomás não foi apenas um sistematizador, foi um espírito sintético. Ele não destruiu o pensamento anterior para construir o seu próprio. Coletou, articulou, aperfeiçoou. Onde outros viam contradições, ele via complementaridade. Santo Agostinho e Aristóteles, Platão e a tradição cristã, os Padres da Igreja e a filosofia árabe — tudo foi integrado, alinhado, convertido em um único edifício lógico. O resultado não é um sincretismo, mas uma unidade orgânica onde cada parte sustenta a outra, sem fissuras ou improvisos.
Essa capacidade de conciliar influências é uma das marcas de sua genialidade. Em sua época, Aristóteles era visto com desconfiança. Seu pensamento havia chegado à cristandade através dos árabes, e muitos temiam que sua filosofia materialista fosse incompatível com a fé. Mas Tomás descobre que Aristóteles não era um inimigo, mas um aliado. Contra a tentativa do misticismo irracional, contra a desconfiança em relação ao mundo sensível, ele mostrou que a razão também pode levar a Deus. Seu realismo não nega a transcendência, mas a afirma de forma mais sólida. O mundo não é uma ilusão passageira, mas um reflexo da ordem divina.
E aqui está o ponto mais decisivo: acreditar em Deus pelo platonismo é um caminho natural. Quem enxerga o mundo das ideias já está no meio do caminho de aceitar a existência de uma mente divina que sustenta essas formas eternas. Mas construir a fé sobre Aristóteles, sobre o concreto, sobre a matéria e o movimento, sobre o palpável e o tangível, isso é uma proeza intelectual sem igual. Tomás não precisou recorrer ao idealismo para provar Deus. Ele partiu do mundo real, dos sentidos, das causas naturais, e a partir delas ascendeu à causa primeira.
Por isso, diferente de Agostinho, que encontra Deus no interior da alma, Tomás o encontra no tecido da realidade. Sua teologia não despreza o mundo, mas o justifica, o ordena e o eleva. O cosmos não é um obstáculo para a fé, mas seu primeiro fundamento. Deus não é um conceito abstrato perdido em um céu metafísico, mas o princípio que explica e sustenta tudo o que existe. Esse é um pensamento de um rigor assustador, de uma lucidez inabalável. Quem lê Tomás com atenção percebe que não há uma única frase solta, um único argumento gratuito. Cada peça está onde deve estar, cada conceito é necessário, cada inferência é decisiva.
Chesterton dizia que “o homem racionalista é um louco, o místico é um são”. Mas Tomás foi ambos sem ser nenhum dos dois. Não foi um racionalista, porque sabia os limites da razão. Não foi um místico, porque entendia a necessidade de esclarecer. Foi um homem de equilíbrio, e é isso que o torna imortal. Seu pensamento atravessou séculos, não porque foi imposto pelas autoridades da Igreja, mas porque sobreviveu ao tempo.
Não é exagero dizer que a “Suma Teológica” não tem paralelo na história da filosofia e da teologia. Sua influência é perene, sua lógica é inquebrável. Quem lê Tomás com seriedade nunca sai o mesmo. Há obras que nos iluminam por um momento e depois se tornam apenas um vestígio na memória. Mas há outras que nos moldam, que nos reorganizam por dentro, que nos ensinam a pensar. Tomás não apenas nos dá respostas, ele nos ensina a perguntar.
Seu legado não é apenas um conjunto de doutrinas, mas um método, uma maneira de ver o mundo. Estudar Tomás não é apenas um exercício teológico, mas um ato de humildade. Diante de sua inteligência, só nos resta reconhecer nossa pequenez e, ao mesmo tempo, aspirar ao mais alto que pudermos alcançar. Porque, no fim das contas, ler Tomás é aprender que a verdade existe, e que vale a pena buscá-la.
Comparar Tomás de Aquino e Santo Agostinho é confrontar dois monumentos da inteligência cristã. Ambos são colossais, influenciaram gerações, elevaram a teologia e a filosofia a um nível que não foi superado. Mas, ao longo dos anos, ao reler os dois, um se impôs como o mais grandioso, o mais lúcido, o mais racionalmente imbatível: Tomás. Não por diminuir Agostinho, que foi uma força de pensamento incomparável, mas porque em Tomás há algo que nenhum outro filósofo ou teólogo conseguiu atingir com tamanha precisão e clareza.
Agostinho foi o grande arquiteto da teologia medieval, mas seu edifício se sustenta sobre a argamassa das emoções, das revelações interiores, das iluminações místicas. Ele escreve como um homem movido pelo fervor, como alguém que experimentou Deus antes de compreendê-lo. Sua conversão foi um abalo existencial, um incêndio que transformou toda a sua visão de mundo. Em Tomás, no entanto, a fé não nasce da tormenta emocional, mas do rigor da razão. Ele não precisa de visões nem de arroubos interiores para chegar a Deus. Ele segue o caminho mais difícil: a inteligência ordenada, a análise paciente, a lógica implacável.
Santo Agostinho é um pensador profundamente platônico. Sua filosofia é ancorada no idealismo, na certeza de que as realidades materiais são apenas sombras das formas perfeitas e eternas. Sua fé encontra no platonismo um caminho natural e quase acaba por ser uma emulação de Platão: se há ideias eternas, deve haver uma mente eterna que as contemple e nelas se fundamente. Esse Deus platônico, que habita a transcendência e ilumina a alma de fora, é quase uma consequência lógica da própria metafísica platônica. Agostinho encontra Deus como quem descobre a luz do sol ao abrir os olhos: era evidente, era necessário, estava ali o tempo todo.
Tomás não teve essa vantagem. Ele não construiu sua teologia sobre a abstração do mundo das ideias. Pelo contrário, fundamentou-a na matéria, no real, no concreto. Tomás encontrou Deus no mundo sensível, mas no mundo tal como ele é. Baseia-se em Aristóteles, o pensador do movimento, da substância, da causalidade, da experiência empírica. Onde Agostinho subia ao céu das essências eternas, Tomás caminhava sobre a terra firme dos seres concretos. O Deus que Tomás descobre não é um postulado metafísico de um mundo além do mundo, mas o primeiro motor que estrutura tudo o que existe.
E aqui está a mais brilhante das vitórias de Tomás sobre Agostinho. O platonismo conduz quase necessariamente à teologia. Quem crê que há realidades eternas e imutáveis já deu metade dos passos em direção a Deus. Mas acreditar em Deus através do pensamento aristotélico — duro, material, tátil, real — é coisa de gênio. É transformar o visível no invisível, sem distorcer a ordem da realidade. É olhar para o mundo sem negar sua substância, mas enxergar nele a presença do divino.
Agostinho desprezava a matéria, via nela uma ilusão menor, um obstáculo para o espírito. Tomás redime a distância entre fé e matéria. O corpo, o mundo, o sensível, o tempo, tudo isso, para Tomás, não é um empecilho para Deus, mas o próprio terreno onde a verdade se manifesta. Deus não é um princípio separado e distante, mas a primeira causa que sustenta todas as coisas. Essa é uma fé mais exigente, mais rigorosa, mais trabalhada. É uma fé que não se apoia em intuições, mas em evidências estruturadas, em encadeamentos impecáveis.
No final das contas, Tomás vence Agostinho porque construiu uma teologia que não depende de uma alma atormentada para existir. Ele não precisa de crises espirituais, de angústias interiores, de iluminações súbitas. Sua teologia é para todos, porque se baseia na premissa de que qualquer um pode constatar: o mundo se move, tudo o que se move precisa de uma causa, e essa causa última é Deus. Não há subjetividade na sua demonstração, não há desvios místicos, não há uma experiência individual que se torne fundamento universal. Há apenas o brilho límpido da razão.
Há quem tenha preferido e prefira Agostinho justamente por isso: seu lirismo, sua inquietação, seu caráter confessional. Mas, para mim, é justamente isso que torna Tomás maior. O lirismo tem seu lugar na literatura, a inquietação pertence à poesia, mas a verdade precisa de solidez. E Tomás não faz poesia, não escreve com arrebatamento. Embora sua escrita seja belíssima, ele construiu, com método e disciplina, uma estrada reta e clara para o conhecimento de Deus. Ele é um engenheiro do pensamento, um arquiteto da teologia.
Se Agostinho é um profeta movido pelo fervor, Tomás é um cientista do divino. Se Agostinho vê Deus nas lágrimas e nos abismos do espírito, Tomás o encontra nas estruturas do real, nas engrenagens perfeitas do universo, nos elos rigorosamente construídos da causalidade. Ele vence não por ter sido mais brilhante emocionalmente, mas por ter sido mais brilhante logicamente. Não foi um grande pensador — foi o maior.
Eis por que sempre retorno a Tomás. Ele não precisa me comover para me convencer. Ele não precisa apelar para minha sensibilidade ou para meu senso de beleza. Ele apenas expõe, de maneira irrefutável, a verdade. E, no fim, o mais belo de tudo isso é que ele me ensina, antes de mais nada, a pensar.
Esse guia não é um exercício de erudição. É um estímulo, uma introdução, uma tentativa de abrir caminhos para que outros possam experimentar o que eu experimentei. A complexidade de Tomás muitas vezes assusta os leitores modernos, habituados a uma filosofia mais fragmentada, menos rigorosa. Mas a “Suma” não é intransponível. Pelo contrário, sua estrutura é feita para ser detalhada, esmiuçada, desdobrada passo a passo. É um edifício com portas abertas, esperando paciência e curiosidade para atravessá-las.
Não pretendo palavras definitivas sobre a “Suma”, o que seria impossível, mas oferecer um mapa objetivo, um método, um impulso inicial. Atravessar a “Suma” é um desafio intelectual e espiritual, mas também um prazer, o prazer de acompanhar um dos maiores gênios da humanidade em sua busca incansável pela verdade. Se este guia servir para iluminar essa jornada para alguém, meu esforço terá valido a pena.
Como ler a Suma Teológica
A leitura da “Suma Teológica” exige um método estruturado. Não se trata de uma obra para ser percorrida de forma superficial, mas de um texto denso, meticuloso e articulado, que exige paciência, reflexão e disciplina. Para compreendê-la em sua totalidade, é necessário abordá-la gradualmente, assimilando cada conceito antes de avançar para questões mais complexas.
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O primeiro passo para estudar a “Suma” é compreender sua estrutura. Tomás organiza sua obra em “questões”, que são divididas em “artigos”. Cada artigo começa com uma série de objeções à tese que será defendida, seguida pela posição do autor e por uma refutação das objeções iniciais. Essa abordagem dialética permite que o leitor compreenda os argumentos contrários antes de chegar à resposta tomista.
A estrutura metódica da “Suma” não é um artifício estilístico, mas uma estratégia pedagógica. Para Tomás, o estudo da filosofia e da teologia não pode se limitar à absorção passiva de conceitos; é necessário submeter as ideias ao exame rigoroso da razão, confrontando objeções e explorando suas implicações lógicas. Tomás não impõe dogmas, mas conduz o leitor a raciocinar junto com ele.
Para aqueles que desejam iniciar a leitura da “Suma”, recomendamos começar pelos textos mais acessíveis. Há edições comentadas que ajudam a elucidar a argumentação tomista, como os artigos de Peter Kreeft, que oferecem explicações sobre os principais temas da obra. Além disso, “Santo Tomás de Aquino”, de G.K. Chesterton, fornece uma introdução biográfica e filosófica ao pensamento tomista, reconhecida como um clássico essencial.
Um erro comum entre os leitores iniciantes é tentar ler a “Suma” de forma linear, como se fosse um romance ou um ensaio. A melhor abordagem é fragmentada e temática. É possível estudar uma questão específica, como as provas da existência de Deus, a lei natural ou a graça, antes de explorar o restante da obra.
A compreensão da “Suma” é facilitada quando se tem familiaridade com os autores que influenciaram Tomás. O pensamento aristotélico permeia toda a sua obra, assim como elementos do neoplatonismo e da tradição patrística cristã, especialmente Agostinho. Conhecer essas fontes auxilia na contextualização do tomismo dentro da história do pensamento filosófico e teológico.
Além da leitura direta, o estudo da “Suma” pode ser enriquecido pelo acompanhamento de cursos e palestras sobre o tomismo. Há diversos especialistas que dedicaram anos à interpretação da obra de Tomás, e suas análises podem fornecer novas perspectivas sobre as questões abordadas.
O hábito da releitura é fundamental. A obra não é um livro que se compreenda completamente na primeira leitura. Pelo contrário, cada novo contato com o texto revela camadas de significado que antes passavam despercebidas. O leitor deve estar disposto a revisitar as mesmas questões inúmeras vezes, aprofundando-se progressivamente.
O estudo deve ser acompanhado pela reflexão pessoal e pelo diálogo com outros leitores. A troca de ideias enriquece a compreensão, pois permite que diferentes interpretações sejam confrontadas. A tradição escolástica valoriza esse debate como um meio essencial de aprendizagem.
Outra recomendação prática é tomar notas ao longo da leitura. Dado o caráter sistemático do livro, registrar os principais argumentos e conceitos facilita a memorização e permite futuras consultas. A criação de esquemas e resumos também é um recurso importante para organizar o pensamento.
É importante que o leitor tenha paciência e humildade intelectual ao se aproximar da obra, não só por sua dimensão de milhares de páginas. Trata-se de uma obra-monumento, e seu entendimento exige tempo e dedicação. Não há motivo para pressa; a verdadeira sabedoria se adquire gradualmente, com esforço e reflexão.
Além da estrutura dialética, Tomás faz uso de um vocabulário específico, especialmente no campo da metafísica. Termos como “ato e potência”, “substância e acidente” e “causa eficiente” são fundamentais para compreender suas argumentações. Estudar esses conceitos previamente facilita a leitura.
A clareza e a objetividade do pensamento tomista não significam que sua leitura seja simples. A profundidade das questões abordadas exige um leitor atento e disposto a se envolver em raciocínios rigorosos. A “Suma” não é um texto de consumo rápido, mas uma obra para ser contemplada e meditada.
Para os leitores cristãos, o estudo não deve ser apenas intelectual, mas também espiritual. Tomás não escreveu apenas para acadêmicos, mas para todos que desejam compreender melhor a fé. A oração e a meditação são partes significativas para absorver as lições.
Mesmo para os não cristãos, a obra oferece uma metodologia de investigação filosófica exemplar. Sua abordagem rigorosa e lógica faz dela uma referência não apenas para a teologia, mas para qualquer área do conhecimento que exija clareza conceitual e argumentação precisa.
A estrutura da “Suma” reflete um pensamento disciplinado, onde cada conceito se encaixa harmoniosamente dentro de um sistema coerente. Esse aspecto torna sua leitura desafiadora, pois cada questão depende da compreensão das anteriores. Mas é essa organização que faz da obra uma das mais detalhadas da história da filosofia.
O método tomista de investigação ensina mais do que conteúdo: ensina a pensar. O leitor atento perceberá que Tomás não apenas fornece respostas, mas exemplifica uma forma de raciocinar que pode ser aplicada a qualquer campo do saber.
Estudar a “Suma” não é apenas compreender seus argumentos, é também aprender a arte do questionamento. A grandeza do pensamento tomista reside não só nas conclusões que apresenta, mas no caminho que percorre para chegar a elas.
A obra é um convite à busca da verdade. Seja no campo filosófico ou espiritual, a obra de Tomás não pretende impor, mas oferecer um itinerário de conhecimento, onde a razão e a fé se complementam para conduzir o homem à contemplação.
Aqueles que se dedicam à leitura do livro percebem que estão diante de algo inesgotável. Sua riqueza e profundidade fazem dela um texto hamletiano, inesgotável, ilimitado. Cada leitura é uma descoberta, cada reflexão um passo na busca pela verdade.
A organização da Suma Teológica
A “Suma Teológica” é um edifício intelectual monumental, como dissemos, assemelha-se à catedral de linguagem de Proust, mas com arquitetura diferente: é meticulosamente estruturada para abarcar toda a teologia cristã à luz da razão filosófica. Tomás concebeu sua obra de forma a proporcionar uma visão sistemática e ordenada da fé, conduzindo o leitor do conhecimento de Deus à compreensão do homem e ao caminho da salvação.
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A obra está dividida em três partes principais: a “Parte 1”, que trata de Deus e da criação; a “Parte 2”, dedicada à moralidade e à vida humana; e a “Parte 3”, que discute a encarnação de Cristo e a salvação da humanidade. Essa estrutura reflete uma progressão lógica, e cada tema prepara o terreno para os próximos.
A “Parte 1” é fundamental para entender a concepção tomista de Deus. Nela, Tomás analisa a essência divina, seus atributos e sua relação com o mundo. Ele parte da existência de Deus, demonstrada racionalmente, e avança para uma reflexão sobre a natureza divina e sua perfeição absoluta.
Essa primeira parte também abrange a criação do mundo. Tomás defende que tudo o que existe provém de Deus e possui uma ordem determinada. A relação entre Criador e criatura é um dos pilares do pensamento tomista, pois estabelece a base para toda a teologia cristã.
No estudo da criação, ele analisa os anjos e a alma humana. Para ele, os anjos são seres puramente intelectuais, sem matéria, enquanto a alma humana, embora espiritual, está unida ao corpo. A antropologia tomista se fundamenta na ideia de que o homem é uma síntese entre matéria e espírito, uma visão que influenciou profundamente a filosofia cristã posterior.
A segunda parte se debruça sobre a moralidade e a natureza do homem. Dividida em “Parte 2-1” e “Parte 2-2”, aborda a ética cristã e a condução da vida em direção ao bem supremo.
O conceito central da moralidade tomista é a lei natural. Para Tomás, a moral não é uma imposição arbitrária, mas um reflexo da ordem racional estabelecida por Deus. O homem, ao agir conforme essa lei, realiza sua natureza e se aproxima de sua finalidade última.
Tomás estabelece quatro tipos de leis: a lei eterna, que é a ordem divina; a lei natural, que decorre da razão e é acessível a todos; a lei humana, que deve estar em conformidade com a lei natural; e a lei divina, revelada por Deus para orientar a salvação.
A virtude ocupa um papel central na ética tomista. Inspirado em Aristóteles, Tomás desenvolve uma teoria moral baseada na prática das virtudes, que são hábitos bons que conduzem o homem ao bem. Ele divide as virtudes em cardeais e teológicas.
As virtudes cardeais são prudência, justiça, fortaleza e temperança. Elas regulam as ações humanas e garantem o equilíbrio moral. Já as virtudes teológicas — fé, esperança e caridade — orientam a alma diretamente para Deus e são infundidas pela graça divina.
Na “Parte 2-2”, Tomás aprofunda o estudo das virtudes e dos vícios, analisando suas implicações na vida prática. Ele também examina as bem-aventuranças e os dons do Espírito Santo, que elevam a alma humana ao seu destino final.
A moral tomista não se limita a uma ética individual; ela possui implicações sociais e políticas. Tomás argumenta que a sociedade deve ser ordenada de acordo com a lei natural e que a política tem o dever de promover o bem comum.
A “Parte 3” trata do mistério central do cristianismo: a encarnação de Cristo. Aqui, Tomás analisa a união hipostática, ou seja, a relação entre a natureza divina e a natureza humana em Jesus Cristo.
O estudo da encarnação leva Tomás a examinar o propósito da vinda de Cristo ao mundo. Ele argumenta que a redenção era necessária para restaurar a humanidade caída pelo pecado original. Cristo, ao assumir a natureza humana, torna-se o mediador perfeito entre Deus e os homens.
Na “Parte 3”, Tomás também desenvolve sua teologia sacramental. Os sacramentos são instrumentos pelos quais a graça de Deus é comunicada aos fiéis, auxiliando-os no caminho da salvação. Cada sacramento possui uma função específica. O batismo purifica a alma do pecado original, a eucaristia nutre espiritualmente os fiéis, a penitência restaura aqueles que caíram no pecado. Tomás explica o funcionamento de cada um, fundamentando-os tanto na Sagrada Escritura quanto na tradição da Igreja.
A teologia sacramental tomista enfatiza a ação de Deus na vida dos fiéis. Para Tomás, a graça não é apenas um auxílio externo, mas algo que transforma interiormente o homem, elevando-o à comunhão com Deus. A “Parte 3” se encerra abruptamente, pois Tomás interrompeu sua escrita antes de concluí-la. Diz-se que, após uma experiência mística, ele afirmou que tudo o que havia escrito parecia palha em comparação com a glória de Deus. Esse episódio reforça o caráter contemplativo de sua obra.
A estrutura da “Suma” não é apenas um esquema arbitrário, mas reflete a própria visão tomista da realidade. Tudo começa em Deus, passa pelo homem e culmina na salvação oferecida por Cristo. Esse caminho da criação à redenção é o eixo central do pensamento tomista. Compreender a organização da “Suma Teológica” é essencial para aproveitar sua riqueza intelectual. Cada parte da obra está interligada, e sua leitura metódica permite ao leitor acompanhar o desenvolvimento lógico das ideias de Tomás. Ao estudar com dedicação, é possível penetrar nos mistérios mais profundos da fé cristã, orientados pela razão e pela tradição.
O maior pilar do pensamento tomista é a relação entre fé e razão. Tomás argumenta que ambos provêm de Deus e não podem estar em contradição. A razão permite que o homem conheça a verdade natural, enquanto a fé revela verdades sobrenaturais que a inteligência humana não pode alcançar por si mesma. A intersecção entre fé e razão se manifesta na teologia natural, que busca demonstrar a existência de Deus por meio da razão. Ele apresenta cinco vias para provar racionalmente a existência de Deus, todas baseadas na observação do mundo e nos princípios lógicos da causalidade e do movimento.
A primeira via é a do movimento: tudo o que se move é movido por outro, e para evitar uma regressão infinita, deve haver um primeiro motor imóvel, que é Deus. Essa argumentação é fundamentada na filosofia aristotélica, mas é elevada a um nível teológico por Tomás.
A segunda via é a da causa eficiente: nada pode ser causa de si mesmo, e se não houvesse uma causa primeira, nada existiria. Deus é a causa incausada, a origem de todas as coisas e causas.
A terceira via é a da contingência: tudo o que existe é contingente, ou seja, poderia não existir. Se tudo fosse contingente, em algum momento não haveria nada. Portanto, deve haver um ser necessário, que sempre existiu e do qual tudo depende.
A quarta via se baseia em nossos graus de perfeição: observamos no mundo diferentes níveis de bondade, verdade e nobreza. Essas gradações só fazem sentido se houver um ser que possua essas qualidades em grau máximo, que é Deus.
A quinta via é a da finalidade: vemos na natureza uma ordem e um direcionamento. Mesmo seres irracionais agem de forma ordenada para um fim. Esse direcionamento aponta para um ser inteligente que ordena todas as coisas, que é Deus.
Além da teologia natural, Tomás desenvolve uma ética baseada nas virtudes. Para ele, a vida moral consiste no aperfeiçoamento das faculdades humanas por meio da prática da virtude. Esse aperfeiçoamento é tanto natural quanto sobrenatural, pois o homem é chamado a viver conforme sua natureza e a se elevar pela graça.
A moral tomista não é um código de regras, mas uma filosofia da vida. Para Tomás, o homem encontra sua realização ao viver de acordo com a razão e a lei natural, que refletem a ordem instituída por Deus. A noção de bem comum é essencial na filosofia tomista. O homem não é isolado, mas parte de uma comunidade, e sua realização está ligada à sociedade. O governo e as leis devem ser ordenados à promoção do bem comum.
A teologia sacramental é outro ponto central. Tomás explica que os sacramentos são sinais de graça divina, instituídos por Cristo para a santificação dos fiéis. Cada sacramento tem uma função específica: o batismo introduz o homem na vida cristã, a eucaristia o fortalece espiritualmente, a confissão restaura a alma caída pelo pecado. Os sacramentos não são meros símbolos, mas realidades que comunicam a graça divina.
A teologia tomista também aborda a relação entre a providência divina e a liberdade humana. Deus governa todas as coisas com sabedoria infinita, mas isso não anula a liberdade do homem. A graça eleva a liberdade, cooperando com o plano divino. A doutrina da graça ocupa um papel central na teologia de Tomás. Ele ensina que o homem, por suas próprias forças, não pode alcançar a salvação, mas precisa da ajuda divina. A graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa, elevando-a a um nível superior.
A relação entre predestinação e livre-arbítrio é um tema complexo na “Suma”. Ele ensina que Deus conhece e ordena todas as coisas, mas isso não implica que o homem seja um mero agente passivo. A predestinação não anula a liberdade, mas se realiza de maneira misteriosa, sem violentar a vontade humana.
A escatologia, ou estudo das realidades últimas, também é abordada. Tomás discute a imortalidade da alma, a ressurreição dos corpos e o destino final do homem. O fim último de toda a criação é a visão beatífica, a contemplação eterna de Deus.
A filosofia tomista permanece relevante porque responde às questões fundamentais da existência humana. Em um mundo marcado pelo relativismo e pelo ceticismo, o pensamento de Tomás oferece um modelo de racionalidade e coerência que conduz a algo estável e sólido. Estudar a “Suma Teológica” não é um simples exercício de erudição, mas um compromisso intelectual e espiritual. Para extrair o máximo da obra, é necessário um método de estudo bem estruturado, que permita ao leitor avançar gradualmente sem se perder na vastidão de temas e argumentos que Tomás apresenta.
A primeira recomendação prática é estabelecer um plano de leitura. Como é um texto denso e sistemático, ler sem direção pode levar à dispersão. Uma boa abordagem é dividir a leitura por temáticas, começando por assuntos mais acessíveis, como as “Cinco vias” ou a doutrina das virtudes, antes de se aventurar nos tratados mais complexos.
O estudo da “Suma” não deve ser apenas teórico. É preciso esforço para conectar suas reflexões com a vida prática e a experiência cotidiana. Tomás não escreve para um público abstrato, mas para pessoas concretas que buscam compreender e viver melhor a verdade.
O ambiente de estudo também pode influenciar a assimilação da obra. O tomismo exige concentração e atenção aos detalhes, portanto, o ideal é reservar um tempo diário para a leitura, longe de distrações, com um caderno para anotações e reflexões. Outra recomendação importante é a meditação sobre o texto. A contemplação dos conceitos permite que o leitor se aprofunde e interiorize o conhecimento adquirido.
Uma discussão com estudiosos pode enriquecer a leitura. Participar de grupos de estudo, cursos especializados ou debates sobre a obra ajuda a consolidar os aprendizados e a expandir as perspectivas sobre os temas envolvidos. Na minha época, além de fazer o curso no Museu de Arte Sacra, eu trabalhava em duas instituições confessionais em São Paulo, uma, a Escola Alef-Peretz Hebraica, instituição judaica; a outra, o quase centenário Colégio Madre Cabrini, instituição tradicional católica, dirigida e mantida por uma ordem rigorosa e estudiosa de freiras, com as quais troquei boas ideias e impressões de leitura. Ter com quem falar sobre Tomás é fundamental.
O latim, idioma original da obra, pode ser uma barreira para alguns leitores. Embora existam boas traduções para diversas línguas, consultar os trechos em latim pode ajudar a captar nuances do pensamento de Santo Tomás, especialmente em questões filosóficas e teológicas mais técnicas.
Para aqueles que desejam uma abordagem mais gradual, recomendamos começar pelos textos que servem como introdução ao seu pensamento, como o “Comentário às Sentenças” e o “Compêndio de Teologia”. Essas obras ajudam a construir uma base sólida antes de mergulhar na “Suma”. O tempo dedicado à “Suma” nunca é tempo perdido. Cada esforço investido em sua leitura e estudo retorna em forma de maior clareza de pensamento, aprofundamento da fé e aprimoramento da capacidade argumentativa.
A filosofia tomista continua a ser estudada e aplicada nos dias de hoje, influenciando campos tão diversos quanto a teologia, o direito, a ética e a filosofia política. O legado de Tomás de Aquino não é apenas um templo do passado, mas um farol no presente.
Ao final da leitura, percebe-se que ela não esgota os mistérios que investiga, mas abre portas para novas perguntas e estudos, além de se tornar uma busca incessante. A obra nos ensina que o conhecimento é um caminho sem fim e que cada descoberta nos aproxima ainda mais da contemplação.
Qual tradução ler?
A escolha da tradução de uma obra como a “Suma Teológica” não é uma questão trivial. Tomás de Aquino escreveu em latim, utilizando uma linguagem técnica precisa, estruturada dentro da tradição escolástica. Uma tradução imprecisa pode comprometer não apenas a beleza do texto original, mas também a clareza de suas argumentações e a coerência interna de seu pensamento. O leitor que deseja se aprofundar precisa de uma versão que preserve a exatidão filosófica e teológica, sem sacrificar a fluidez da leitura.
Entre as principais traduções disponíveis em português, três se destacam. A da Editora Vozes é uma opção acessível e bem difundida no Brasil, mas se trata de uma versão que moderniza a linguagem em excesso e pode não ser a mais adequada para um estudo mais aprofundado. Sua vantagem é a leitura mais direta, mas isso ocorre à custa da precisão conceitual. Para quem busca uma introdução mais leve, pode ser válida.
A segunda opção é a tradução da Editora Paulus, que oferece versão bilíngue. Essa edição tem méritos, especialmente na preocupação em manter fidelidade ao latim, mas peca em pontos estilísticos, apresentando um texto que parece rebuscado e, às vezes, truncado. Apesar de ser uma boa alternativa para leitores que já possuem certa familiaridade, não é a de maior fluidez para quem busca clareza e rigor ao mesmo tempo.
A melhor escolha, sem dúvida, é a edição bilíngue publicada pelas Edições Loyola. Esta versão se destaca por manter o latim original ao lado da tradução em português, permitindo que o leitor consulte o texto original sempre que necessário. Além disso, a qualidade da tradução é superior: preserva a precisão terminológica sem comprometer a fluidez da leitura. É uma edição mais bem cuidada e academicamente respeitada, sendo amplamente utilizada em cursos especializados e estudos aprofundados do tomismo. Quem deseja estudar a “Suma Teológica” com seriedade deve priorizar essa edição.
A tradução da Loyola também tem o mérito de apresentar notas explicativas que auxiliam na compreensão de passagens mais densas. Esse cuidado editorial faz dela uma ferramenta indispensável tanto para iniciantes quanto para leitores mais experientes. Não se trata apenas de uma questão de fidelidade ao original, mas de oferecer ao leitor um suporte adequado para que a leitura se torne uma experiência de aprendizado estruturado. Escolher uma boa tradução é garantir que o pensamento de Tomás seja compreendido em sua forma mais pura, sem distorções ou simplificações indevidas.
A grandeza de Tomás de Aquino e o chamado à leitura
Há livros que nos ensinam algo. Outros nos moldam por completo. A “Suma Teológica” pertence a essa última categoria. Não é um livro para ser lido e abandonado, mas um companheiro para toda a vida. Seu valor não está apenas na informação que transmite, mas na transformação que provoca.
Entre os grandes amigos que a literatura me deu — Proust, Shakespeare, Aristóteles, Joyce, Montaigne, Dante e Cervantes — Tomás ocupa um lugar especial. Nele encontro uma sabedoria serena e ordenada, que ilumina o entendimento sem alarde, sem pressa, sem angústia. É um mestre que não exige, mas conduz; não obriga, mas convida.
A cada releitura, percebo o quanto sei pouco. O que parecia claro se revela ainda mais profundo, e o que parecia distante se torna familiar. É essa constatação da minha própria ignorância que me mantém fiel a Tomás. Sua inteligência ilumina minha pequenez, e sua humildade me ensina que a verdadeira sabedoria consiste em ter consciência de nossas limitações diante da vida e das essências eternas.
Não releio Tomás por vaidade acadêmica, mas porque nele encontro um guia para pensar, questionar e crer. Sua obra organiza um mundo caótico, é um lembrete de que a verdade existe e pode ser conhecida. Cada linha que estudo me aproxima um pouco mais da clareza, do equilíbrio, da serenidade que sua obra transmite e, ao mesmo tempo, me mostra o quão falho e limitado sou.
Tomás de Aquino é o homem mais inteligente que já existiu. Diante de sua sabedoria monumental, só me resta admitir as trevas de minha insignificância e continuar aprendendo. Por isso, volto sempre a ele, para reencontrar o caminho seguro da razão. E assim seguirei, lendo e relendo, sempre e para sempre.