Imersão dolorosa em uma América ainda em formação, “Era Uma Vez em Nova York”, do diretor James Gray, recupera um olhar profundo e inquietante sobre a experiência do imigrante, ecoando de forma intensa e muito mais sombria o tema já tratado por Charlie Chaplin em seu clássico de 1917, “O Imigrante”. Ao invés da irreverência sutil de Carlitos, que desafiava com humor discreto as autoridades em Ellis Island, o filme apresenta a silenciosa resistência moral de Ewa, interpretada de maneira poderosa e delicada por Marion Cotillard, cuja fé e dignidade parecem ser as únicas armas contra uma realidade impiedosa.
A chegada de Ewa à Ellis Island em 1921, acompanhada pela irmã Magda, rapidamente se transforma em pesadelo. A separação das duas, causada pela suspeita de tuberculose em Magda, lança Ewa em uma espiral de desespero e vulnerabilidade. Nessa atmosfera de fragilidade emocional, Bruno Weiss, vivido com perturbadora intensidade por Joaquin Phoenix, emerge como um personagem enigmático, sedutor e perigoso. Sob o disfarce benevolente de um suposto agente de assistência a imigrantes, Bruno se aproxima estrategicamente de Ewa, prometendo-lhe segurança e trabalho respeitável. Entretanto, a fachada generosa oculta uma realidade de exploração: ao perceber as necessidades urgentes da protagonista, especialmente financeiras, ele gradualmente a conduz para um mundo de espetáculos burlescos e prostituição.
É nesse confronto silencioso entre opostos que o filme constrói sua complexidade dramática. Enquanto Ewa se mantém fiel a uma moralidade inabalável, sustentada por sua espiritualidade católica e um senso profundo de dignidade, Bruno encarna uma figura contraditória, marcada por impulsos violentos e uma autodestrutividade latente. Embora seja Ewa quem enfrenta as situações mais degradantes, é Bruno quem sofre a maior crise existencial, corroído pela culpa e pela obsessão por uma mulher que jamais se entrega emocionalmente a ele. A dinâmica entre ambos, portanto, não se limita a uma vítima e seu algoz, mas revela um jogo sutil de poder, carências e desejos frustrados que reflete diretamente a própria dualidade emocional do diretor James Gray.
Ambientado em uma Nova York retratada com rigor impressionante, cada cena parece meticulosamente esculpida em tons sombrios e melancólicos. A fotografia, quase pictórica, evoca as tradições do chiaroscuro, acentuando a sensação de aprisionamento e desesperança vivida pelos personagens. A precisão visual de Gray cria uma experiência sensorial imersiva, capturando uma atmosfera que oscila entre sonho e realidade, entre a sedução estética e o desconforto emocional. Mesmo quando expõe a degradação de Ewa — como na sequência angustiante em que ela é exposta às humilhações verbais de um público masculino agressivo — Gray o faz sem recorrer à exploração visual gratuita, preferindo focar exclusivamente no rosto de Cotillard, cuja expressão silenciosa traduz um universo inteiro de resistência e sofrimento contido.
Cotillard incorpora magistralmente uma figura feminina rara no cinema contemporâneo: a mulher cuja pureza interior jamais é corrompida, ainda que sua dignidade física seja constantemente atacada. Sua postura é reminiscente das heroínas clássicas dos primeiros anos do cinema, especialmente aquelas retratadas por D.W. Griffith e Lillian Gish, com sua força moral e capacidade de suportar privações quase sobre-humanas. No entanto, é precisamente essa pureza quase intocável que, em alguns momentos, ameaça tornar Ewa distante demais do público moderno, privando-a de expressões mais humanas de fraqueza, irritação ou desespero.
Nesse sentido, a presença do personagem Emil (Jeremy Renner), o mágico que oferece uma esperança passageira para Ewa, funciona como contraponto essencial, ainda que problemático. Inicialmente apresentado quase como uma fantasia, Emil representa uma possibilidade concreta de fuga da realidade opressiva criada por Bruno. Contudo, a interpretação discreta demais de Renner faz com que sua participação não alcance a força dramática necessária para rivalizar com a intensidade de Phoenix e Cotillard. Mesmo assim, sua existência no filme abre espaço para a reflexão sobre a natureza ilusória da salvação, num ambiente onde a esperança parece sempre distante e improvável.
A direção firme de Gray manifesta-se também na construção do desfecho do filme, cujo impacto emocional perdura muito após seu encerramento. O último plano captura visualmente aquilo que Bruno e Ewa jamais alcançam juntos: um equilíbrio perfeito entre luz e sombra, entre dor e redenção, entre a liberdade desejada e a prisão emocional inevitável. Esse encerramento, de rara beleza melancólica, sintetiza com elegância toda a trajetória emocional da narrativa, reafirmando o talento artístico do diretor.
“Era Uma Vez em Nova York” transcende sua superfície dramática para refletir sobre as múltiplas dimensões da imigração, do preconceito e da exploração, construindo uma narrativa tão perturbadora quanto necessária. Não é apenas uma história sobre uma mulher que luta para sobreviver em um novo mundo, mas uma reflexão profunda sobre como esse novo mundo se construiu sobre a fragilidade e a resistência daqueles que vieram de fora. Assim, o filme oferece um retrato incômodo, mas profundamente humano, sobre o preço emocional da sobrevivência — uma experiência cinematográfica que desafia e comove o espectador, tornando-se, por suas próprias virtudes e complexidades, inesquecível.
★★★★★★★★★★