Troque a folia por Ethan Hawke na Netflix: um mistério estilo Agatha Christie perfeito para seu carnaval Ben King / Signature Entertainment

Troque a folia por Ethan Hawke na Netflix: um mistério estilo Agatha Christie perfeito para seu carnaval

Algumas narrativas transcendem as barreiras habituais de classificação, recusando-se a habitar categorias confortáveis. Não por capricho, mas porque exigem de seu público uma participação ativa, quase conspiratória, no jogo fascinante que estabelecem com as possibilidades narrativas. Este é precisamente o território ocupado por “O Predestinado”, filme assinado pelos cineastas australianos Michael e Peter Spierig. Inspirado no enigmático conto “All You Zombies”, escrito em 1959 por Robert A. Heinlein, o filme desafia frontalmente as convenções do cinema sobre viagens temporais. Ao invés de tentar simplificar ou domesticar a complexidade original do texto, os irmãos Spierig potencializam seu efeito desconcertante, mergulhando o espectador num labirinto existencial em que passado, presente e futuro não são pontos estáveis, mas fios intricados e instáveis de uma mesma trama.

No centro desse jogo perturbador estão os chamados Agentes Temporais, figuras paradoxais que navegam no fluxo caótico da história humana para impedir eventos catastróficos antes mesmo que ocorram. Ethan Hawke dá vida a um desses agentes, um homem tão consumido pelas viagens incessantes que o conceito de identidade tornou-se um luxo do qual já abriu mão. Sua missão imediata é desarmar uma ameaça que paira sobre a Nova York dos anos 70, encarnada no terrorista conhecido como “Fizzle Bomber”. Ferido gravemente ao tentar desativar uma bomba, ele retorna após uma cirurgia plástica extrema com uma nova aparência — agora idêntica à do ator Ethan Hawke. Ao assumir a identidade de bartender como disfarce, ele encontra uma personagem intrigante e enigmática, autodenominada “A mãe solteira”, interpretada com intensidade incomum pela atriz australiana Sarah Snook. Esse encontro, aparentemente casual, desencadeia revelações capazes de abalar qualquer percepção linear do tempo e da existência humana.

Sarah Snook torna-se o verdadeiro eixo dramático do filme, em uma interpretação que não é simplesmente notável, mas definidora. Sua personagem carrega um paradoxo pessoal ainda mais profundo do que os que habitualmente permeiam histórias de viagem temporal. Transitória em gênero e identidade, sua performance não apenas convence, mas provoca reflexões sobre a fragilidade dos limites que tradicionalmente usamos para definir quem somos. Ao incorporar com maestria uma figura que transita entre masculino e feminino, passado e futuro, certeza e dúvida, Snook estabelece uma nova referência interpretativa, capaz de alçar sua atuação à categoria das melhores já vistas no cinema contemporâneo, digna de reconhecimento nas mais exigentes premiações internacionais.

A estratégia narrativa adotada pelos irmãos Spierig amplifica essa riqueza dramática. Ao contrário de outros filmes de ficção científica que utilizam viagens no tempo como mero dispositivo estilístico, “O Predestinado” abraça deliberadamente as contradições inerentes ao tema. O objetivo não é resolver ou justificar paradoxos, mas utilizá-los como metáfora potente da condição humana, exposta ao eterno risco de autossabotagem. Em cada salto temporal, há um espelhamento perturbador da nossa incapacidade em superar erros, aprender com o passado ou mudar, de fato, nosso destino. Essa dimensão filosófica empresta ao filme uma profundidade rara, sublinhada por comparações inevitáveis com clássicos consagrados como “Looper — Assassinos do Futuro”, “Primer” e o atemporal “De Volta para o Futuro Parte II”.

Visualmente, o filme recusa a tentação do espetáculo gratuito, privilegiando o realismo discreto em figurinos, cenários e fotografia. Cada detalhe é meticulosamente concebido para criar atmosferas distintas e verossímeis nas diversas épocas retratadas, evitando armadilhas visuais que poderiam comprometer a seriedade temática. A estética escolhida pelos diretores valoriza a veracidade emocional em detrimento da exibição técnica pura e simples, assegurando uma conexão mais profunda com o espectador, cuja atenção é constantemente testada e recompensada.

Ainda assim, o coração da obra permanece na atuação magnética de Snook e na sólida presença de Hawke, que garante uma base dramática segura e estável. A complexidade emocional das relações, que se desdobram em múltiplas camadas e revelações, é mantida intacta graças à competência excepcional dos dois atores, capazes de conferir credibilidade absoluta a uma trama que, em mãos menos habilidosas, poderia desmoronar sob o peso de suas próprias ambições narrativas.

Se há algum ponto em que o filme poderia ser questionado, seria exatamente na coragem extrema que exibe ao explorar os limites de sua própria lógica. Porém, essa ousadia não diminui, mas sim reforça a potência do resultado final. O aparente excesso de informação ou as inevitáveis lacunas decorrentes da manipulação do tempo convertem-se, ironicamente, em pontos fortes da experiência cinematográfica oferecida pelos Spierig. Em um gênero frequentemente marcado por previsibilidade, “O Predestinado” ousa afirmar que a vida — e por extensão, o tempo — é fundamentalmente irracional, impossível de ser completamente decifrada ou controlada, mesmo quando se tem o poder quase absoluto de percorrê-la livremente.

Ao oferecer uma reflexão tão contundente sobre identidade, destino e as consequências de nossas escolhas, “O Predestinado” eleva-se à condição de filme indispensável, daqueles que permanecem na memória muito depois que os créditos sobem à tela. Não é apenas uma experiência desafiadora ou intelectualmente estimulante; é um alerta silencioso sobre a eterna vulnerabilidade humana, sobre nossa dificuldade de aceitar as consequências daquilo que somos e fazemos, e sobre o paradoxo maior que rege nossas vidas: quanto mais poder acreditamos ter sobre o destino, mais implacavelmente somos submetidos à sua força.

Talvez aí resida sua grande ironia e sua genialidade definitiva. Ao final, o filme não oferece respostas reconfortantes nem conclusões fáceis — pelo contrário, ele se permite permanecer suspenso em incertezas, tornando-se inesquecível exatamente por exigir do público aquilo que poucas obras ousam pedir: não apenas que assista, mas que aceite perder-se na jornada proposta, e que dali emergirá transformado, consciente de que as perguntas, em última análise, são muito mais valiosas do que quaisquer respostas definitivas.

Filme: O Predestinado
Diretor: Michael e Peter Spierig
Ano: 2014
Gênero: Ficção Científica/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★