Desde que se tem registro, a contaminação das forças de segurança por práticas ilícitas deixou de ser exceção e passou a integrar a paisagem cotidiana, não apenas nos bastidores, mas também nos flagrantes que preenchem manchetes. A cena recorrente de policiais envolvidos em condutas incompatíveis com suas atribuições forma um quadro perturbador, em que a linha entre autoridade e banditismo se dissolve. O cidadão, perdido nesse cenário degradante, se vê diante de uma realidade na qual não distingue mais quem deveria protegê-lo de quem o ameaça.
Entre milicianos que operam como grupos de extermínio, extorquindo pequenos comerciantes que já se veem sufocados pelos impostos, e grandes redes clandestinas que movimentam fortunas com armas e drogas desviadas, o crime organizado se fortalece no seio das próprias instituições que deveriam combatê-lo. Esse universo de degradação e violência encontra eco na filmografia de Olivier Marchal, que, fiel ao seu estilo, entrega em “Bastion 36” mais uma imersão brutal no submundo da corrupção policial.
A missão primordial das forças de segurança de garantir a ordem e os direitos fundamentais foi gradualmente pervertida, tornando-se justificativa para toda sorte de abusos. O ciclo de degradação não respeita distinções sociais: à medida que mais agentes aderem a esquemas ilícitos, o colapso se avizinha, arrastando consigo toda uma sociedade para um estado permanente de medo e desconfiança. No exato momento em que os que deveriam resguardar o bem público optam por servir a interesses escusos, a ruína deixa de ser ameaça distante e passa a moldar o cotidiano, sem perspectiva de reversão. A corrupção arraigada no sistema faz de qualquer tentativa de regeneração um desafio hercúleo, tornando a fronteira entre legalidade e criminalidade cada vez mais opaca. Esse é o contexto que Marchal mais uma vez retrata, sem concessões e sem ilusões sobre um futuro redentor.
Retornando à ideia de uma França sufocada por facções criminosas infiltradas no aparelho estatal, Marchal constrói “Bastion 36” sob a mesma ótica de seus trabalhos anteriores, o que, longe de ser uma limitação, reafirma sua obsessão temática. Com o roteirista Michel Tourscher, o diretor revisita a tensão estrutural já explorada em “36” (2004), onde dois homens em polos opostos do espectro moral travavam um embate que transcendia a disputa individual. Aqui, a dinâmica se repete sob nova roupagem: Antoine Cerda, policial rebaixado após um deslize disciplinar, se vê isolado ao enfrentar antigos colegas convertidos em criminosos.
O protagonista interpretado por Victor Belmondo carrega o peso de uma batalha desigual, enquanto Marchal reforça sua assinatura estética, mesclando crises morais com influências noir que evocam De Palma e Robert Siodmak (1900-1973). As cenas divididas entre Belmondo e Yvan Attal acrescentam potência ao impacto visual do longa, intensificando o horror dos assassinatos e desaparecimentos que pontuam a narrativa. Ao término das mais de duas horas de projeção, a sensação que persiste é a de que Olivier Marchal ainda não disse tudo, e que, no rastro de Antoine Cerda, outras histórias igualmente sombrias continuarão a ser contadas.
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