Quem não recebe a graça de nascer com o espírito já blindado pela força da resiliência, propriedade da física que, aplicada aos seres humanos, define o quão inabaláveis podemos mostrar-nos frente aos choques, precisa começar rápido sua busca por esse atributo misterioso, mas que será de importância cada vez maior. A todos assiste o direito de, em não arruinando a vida alheia, cometer todas as insânias que quiser e conseguir, e esse princípio básico da vida é observado com fervor por Emilie, a garota sobre cuja figura entre quase luminosa e quase sombria “O Caminho Errado” estende-se por hora e meia.
Emilie, uma mãe solteira lutando pela sobrevivência na selva de pedra e gelo da Noruega, vai de uma mulher tíbia e um tanto irresponsável a uma genuína atleta, desbravando um cenário agreste enquanto põe a cabeça no lugar e toma coragem para mudar a rota. O diretor Hallvar Witzø concentra em sua anti-heroína as aspirações de muitos que, como Emilie, precisam de um empurrãozinho para chegar aonde querem ou, pelo menos, ir um pouco mais longe, sem se intimidar com as intempéries da jornada.
Na introdução, o roteiro de Lars Gudmestad, Maria Karlsson e Vilde Klohs mostra Emilie zonza com as várias solicitações de um cliente na lanchonete onde trabalha, até ser posta na rua. Ela decide afogar as mágoas com os amigos num bar, flerta com um rapaz, vai com ele a uma praça em frente ao estabelecimento, sente vontade de urinar enquanto o parceiro de uma noite compra preservativos e… é abordada por Martin, o policial gentil responsável pela área.
Witzø tira da situação todo o proveito que pode, apresentando a personagem central sob ângulos distintos, todos enriquecidos pela atuação sensível de Ada Eide, atenta às sutilezas do humor de Emilie. No dia seguinte, ela precisa levar a filha à escola, mas a menina é dispensada por causa de uma febre renitente; já de volta ao apartamento, um incidente doméstico com o vaso sanitário promove uma reviravolta na vida da moça, sem direito a tardes de isolamento diante da TV do quarto de hóspedes da casa do irmão, Gjermund, o personagem de Trond Fausa.
Ela toma sozinha a garrafa de Barolo da cunhada e Gjermund lhe dá um ultimato: ou ela participa da Birkebeinerrennet, a maratona que celebra o resgate de Håkon Håkonsson (1204-1263), o então futuro herdeiro do trono norueguês, ou terá de esquecê-lo e viver sob seus próprios auspícios. Nesse ponto, o diretor começa a encaminhar o filme para onde sugere o título, e, a contragosto, Emilie aquiesce em participar da tal corrida. A bela fotografia de Trond Tønder destaca os tons brancos e azulados da neve em contraste com as roupas vermelhas e amarelas dos competidores, absortos em seus pensamentos pelos próximos 54 quilômetros.
Para Emilie, a aventura alonga-se por dez horas e 47 minutos, ao longo dos quais ela pensa em desistir cem vezes por segundo, tendo por companhia um hipocondríaco que revela ter um enfisema que faz com que cada passo pareça a escalada de uma montanha — ainda que ele saia-se melhor que ela, num esforço hercúleo para suportar atingir a linha de chegada com três quilos e meio nas costas, o peso de Håkon. Eide catalisa com o mesmo vigor a comicidade e a aura de odisseia da trama, com espaço para a definição do arco romântico de Emilie e Martin, de Deniz Kaya. Para quem estava sem um norte, ela até que conseguiu se encontrar.
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