A paleontóloga Mary Anning, figura pioneira na ciência do século XIX, é retratada com profundidade e delicadeza em uma jornada de (auto)descoberta emocional e intelectual. Em uma vila costeira na Inglaterra de 1840, ela se dedica à busca e catalogação de fósseis que desafiam as convenções científicas de seu tempo, revelando criaturas ancestrais que moldaram o curso da evolução. Entretanto, sob a superfície desse trabalho árduo e solitário, reside um conflito interno: a luta para afirmar sua identidade em um mundo que nega voz e reconhecimento às mulheres.
O diretor Francis Lee explora essa dualidade ao revelar a complexidade emocional de Anning, interpretada com maestria por Kate Winslet. Ao lado de Charlotte, vivida por Saoirse Ronan, a narrativa mergulha na relação que transforma a vida de ambas. Com um toque sensível e sem recorrer a melodramas fáceis, o filme expõe a intensidade desse laço em meio ao isolamento social e às rígidas expectativas vitorianas. As cenas de intimidade, intensas e quase cruéis em sua vulnerabilidade, contrastam com o silêncio impositivo que molda as existências femininas daquele período.
A construção visual é notavelmente impactante, utilizando a paisagem agreste e desolada de Lyme Regis como metáfora da solidão de Anning. O som ambiente, que vai do vento uivante às ondas quebrando incessantemente, reforça a sensação de aprisionamento e rotina inescapável. A fotografia austera sublinha a aridez da vida de Mary, refletindo a dureza das rochas que cava diariamente em busca de relevância científica e pessoal.
A narrativa não se limita ao romance especulativo, mas questiona as noções de invisibilidade e legado. Anning, cujas descobertas paleontológicas foram atribuídas a homens de renome, representa um apagamento histórico que ressoa até hoje. A cinebiografia desafia a tradição ao dar voz a uma mulher que, apesar de sua contribuição imensurável à ciência, permanece excluída dos registros oficiais. Assim, o filme não apenas revisita o passado, mas propõe uma reflexão sobre as barreiras ainda impostas à representação feminina.
Em vez de uma trajetória linear de superação, o enredo oferece um olhar nuançado sobre a resignação e a resistência silenciosa. Anning é retratada não como uma heroína romântica, mas como uma figura complexa, que navega entre o dever familiar e a paixão científica. Sua relação com Charlotte, marcada por inseguranças e desejos reprimidos, não é idealizada, mas apresentada com uma autenticidade brutal que humaniza ambas as personagens.
Francis Lee articula um debate sobre a memória e a construção da história. Se a vida íntima de Mary Anning permanece envolta em mistério, é porque as estruturas sociais de sua época não permitiram que ela se expressasse plenamente. “Ammonite” questiona a veracidade absoluta das biografias e sugere que, às vezes, é preciso imaginar novas narrativas para preencher as lacunas deixadas pelo silêncio imposto. Com isso, resgata não apenas a cientista, mas também a mulher cuja voz ecoa nas falésias que tanto explorou.
★★★★★★★★★★