David Lynch, o aclamado cineasta falecido recentemente, é uma figura que transcende a mera popularidade. Sua obra, embora reverenciada, não se alinha aos padrões do cinema tradicional e comercial. Lynch combina brutalismo, neoexpressionismo e surrealismo em narrativas perturbadoras que exploram os recônditos mais profundos da psique humana — territórios que, muitas vezes, preferiríamos não explorar.
Em “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer”, temos uma prequela da série que se passa nos dois anos que antecedem o filme. Lançado em 1992, o longa-metragem de duas horas e meia é, segundo o roteirista Robert Engels, apenas uma pequena parcela de todo o material gravado. Ele afirma que as cenas remanescentes poderiam facilmente criar uma sequência para a versão que conhecemos do filme.
Atenção! Esta crítica contém spoilers. Se você é sensível a isso, é aconselhável sair da página.
O enredo de Laura Palmer é profundamente sensível e assustador. Tudo começa quando dois agentes do FBI, Chet Desmond (Chris Isaak) e Sam Stanley (Kiefer Sutherland), chegam a uma pequena cidade em Washington para investigar o assassinato de uma mulher chamada Teresa Banks (Pamela Gidley). No entanto, após alguns dias de investigação, Desmond desaparece sem deixar rastros, indicando que dilemas mais obscuros e profundos circundam a morte de Banks e a cidade.
Logo no início, sabemos que o crime envolve pessoas poderosas e influentes que facilmente conseguem interferir nas investigações locais para atrapalhar a resolução do caso. Lynch então nos transporta para um ano à frente, explorando os últimos sete dias de Laura Palmer (Sheryl Lee), uma adolescente popular e problemática que tem alguma ligação com Teresa Banks.
Laura é a rainha do baile na escola de ensino médio, desejada por todos os rapazes, especialmente pelo namorado James (James Hurley) e por Bobby (Dana Ashbrook), dois jovens que nutrem sentimentos não correspondidos por ela, mas que acreditam viver romances com Laura. Ela tem dificuldades de conexão, e isso envolve traumas profundos que são explorados ao longo do filme, sendo as razões para o aviso de spoiler.
Por trás da fachada de boa menina e garota popular da escola que todos invejam, Laura vive uma vida secreta e obscura. Ela tem envolvimento com drogas, é prostituta e sofre abusos sexuais e perseguições de um sujeito chamado Bob, um homem perigoso, obsessivo e capaz de qualquer atrocidade. O trauma causado por esses abusos, que acontecem desde a infância, faz com que Laura sofra alucinações e tenha depressão e ansiedade.
Ela está constantemente em estado de angústia e desespero, e quando dorme, tem visões macabras que transcendem o mundo material. Embora tente falar sobre Bob para outras pessoas, é sempre descredibilizada. As pessoas não acreditam que ele exista e asseguram que ele é apenas ilusão de sua mente. Bob é tratado como uma patologia de Laura. Ele pode até ser, mas não de Laura. Bob existe e está mais próximo do que se imagina.
Em casa, a relação de Laura com o pai, Leland (Ray Wise), é dicotômica. Ao mesmo tempo em que ele aparenta ser um pai presente e preocupado com o bem-estar de Laura, tem surtos e acessos de fúria inexplicáveis, deixando óbvio um distúrbio de personalidade. Juntar as peças desse quebra-cabeça não é difícil, mas é definitivamente perturbador. Lynch não é literal, mas as coisas não são tão complicadas, e é fácil compreender sua lógica. Enquanto a sala vermelha com chão xadrez representa o inconsciente, com os medos, a crueldade e tudo de ruim que habita lá dentro, Bob representa o lado mais cruel de Leland, que ganha outra representação física aos olhos de Laura. A transformação é física, porque o trauma dela camufla o próprio pai para que ela não o reconheça.
Leland é um advogado influente e bem-sucedido, que não tem muito controle sobre suas ações e deixa, muitas vezes, que seu lado mais perverso fale mais alto. Assistir “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer” não é fácil, porque é um filme pesado, com uma bagagem histórica e uma premissa indigesta. Embora mal acolhido por muitos à época, hoje o filme é sinônimo de arte e tem status de obra-prima. Era adorado por Lynch, que sempre acreditou que o filme foi injustiçado. Está no Imovision.
★★★★★★★★★★