Dramatização de uma das tragédias mais conhecidas da humanidade é retrato visceral e único sobre a sobrevivência, na Netflix Divulgação / Touchstone Pictures

Dramatização de uma das tragédias mais conhecidas da humanidade é retrato visceral e único sobre a sobrevivência, na Netflix

Poucas narrativas reais confrontam tão intensamente os limites da resistência humana quanto a tragédia dos Andes, e “Vivos”, dirigido por Frank Marshall em 1993, transforma esse episódio histórico em um estudo visceral sobre sobrevivência e moralidade. Em vez de se limitar a uma crônica do desastre, o filme desafia o espectador a encarar os dilemas éticos e psicológicos que emergem em situações extremas, expondo o lado mais instintivo da natureza humana.

A trama inicia com uma atmosfera quase idílica, retratando um grupo de jovens rugbiers uruguaios a bordo do fatídico voo 571. Entre brincadeiras e promessas sobre o futuro, eles desconhecem o destino brutal que os aguarda. A queda da aeronave, uma das sequências mais impactantes do filme, não apenas assombra pelo realismo técnico, mas também pela maneira como escancara a imprevisibilidade da morte. Alguns passageiros são sugados para fora da fuselagem, outros esmagados pelos destroços, enquanto os sobreviventes emergem desorientados em um inferno branco de gelo e solidão. O filme não dramatiza a tragédia em si, mas a transforma em um ponto de partida para uma reflexão muito mais profunda: diante da morte iminente, o que define a humanidade?

Nos primeiros dias, a esperança do resgate mantém a coesão do grupo, mas a confirmação de que as buscas foram encerradas dilacera qualquer ilusão de salvação externa. O frio intenso, a fome e as feridas passam a ser adversários tão letais quanto a própria montanha. É nesse momento que o filme adentra um dos territórios mais desconfortáveis para o espectador: a necessidade do canibalismo como única via para a sobrevivência. “Vivos” evita qualquer sensacionalismo ao tratar desse dilema, optando por uma abordagem contida e profundamente emocional. O ato de se alimentar dos corpos dos falecidos não é retratado como um horror grotesco, mas como uma decisão devastadora, carregada de dor e reverência. A câmera de Marshall captura os olhares de desespero, a relutância dos personagens, a ruptura daquilo que antes parecia inegociável. O filme não busca respostas fáceis nem julgamentos morais; apenas expõe a complexidade da condição humana diante do inominável.

À medida que o tempo avança, os sobreviventes se reconfiguram em uma sociedade improvisada, onde novas lideranças emergem e estratégias de resistência são adotadas. Nando Parrado (Ethan Hawke) e Roberto Canessa (Josh Hamilton) assumem a missão impossível de atravessar os Andes em busca de ajuda, protagonizando uma das sequências mais eletrizantes do longa. A travessia é um teste absoluto de resiliência, onde a vastidão das montanhas se impõe como um adversário silencioso e impiedoso. Quando finalmente encontram auxílio, a vitória não é celebrada com euforia, mas com um esgotamento que traduz o peso do que viveram. Eles não são heróis no sentido clássico da palavra; são sobreviventes marcados para sempre pela experiência.

A narrativa de “Vivos” se destaca não apenas por sua fidelidade aos eventos reais, mas pela forma como traduz cinematograficamente a dimensão emocional do ocorrido. A fé é um elemento presente, mas não imposto como resposta definitiva: para alguns, a sobrevivência é um milagre; para outros, é resultado de pura obstinação e instinto. Essa ambiguidade enriquece a experiência do espectador, permitindo múltiplas interpretações.

Se há críticas ao filme, elas recaem sobre escolhas estéticas e de elenco. A predominância de atores de aparência hollywoodiana distancia a obra da veracidade dos eventos, e algumas nuances emocionais das famílias dos sobreviventes são pouco exploradas. No entanto, esses pontos não comprometem o impacto da narrativa. “Vivos” não se contenta em ser um relato de tragédia e triunfo; é um exame profundo sobre a fragilidade e a força humanas. Mais do que uma história sobre aqueles que resistiram, é um convite a refletir sobre os limites do que significa estar vivo.

Filme: Vivos
Diretor: Frank Marshall
Ano: 1993
Gênero: Aventura/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★