A necessidade humana de criar soluções para problemas que ele próprio gera levou ao desenvolvimento de dispositivos antes impensáveis. Esses mecanismos, que ampliam as experiências e transformam percepções, passaram de maravilhas tecnológicas a meros utensílios do cotidiano, tamanha foi sua assimilação na rotina das pessoas. O que antes parecia um prolongamento da consciência tornou-se tão trivial quanto qualquer outro eletrodoméstico na vida moderna.
Com isso, os antigos mitos perderam espaço para novas necessidades e desejos que a tecnologia passou a suprir. No entanto, a inteligência artificial, com seu poder ambíguo de criar e destruir, remonta a tempos em que computadores não passavam de sonhos distantes. Em “Cassandra”, Benjamin Gutsche explora essa dualidade ao narrar, em seis episódios, a jornada de uma família que se muda para uma casa aparentemente comum, mas que esconde uma assistente virtual adormecida há cinquenta anos. Quando desperta, ela tem um objetivo: ajustar contas com a humanidade de um modo inesperado.
Após uma perda dolorosa, David Prill leva sua esposa, Samira, e seus filhos, Flynn e Juno, para um vilarejo isolado na Alemanha. Lá, encontram um casarão abandonado, cenário de um experimento tecnológico pioneiro dos anos 1970. Enquanto a internet era apenas um projeto militar em 1969, “Cassandra” representava o auge da inovação, concebida como a assistente doméstica ideal. A série explora a evolução tecnológica com profundidade, evidenciando como a criação humana pode ganhar vida própria e desafiar seus criadores.
Gutsche utiliza elementos culturais familiares ao público, como o design de Cassandra, que remete à Rosie dos Jetsons, popularizada na animação de William Hanna e Joseph Barbera. O nome da ginoide é uma alusão à Cassandra mitológica, conhecida por suas previsões desacreditadas. No entanto, a “Cassandra” da série é uma visionária astuta, que utiliza seu conhecimento para manipular a realidade ao seu favor, transformando-se numa personagem inquietantemente humana.
Desde o episódio inicial, Gutsche foge de clichês ao construir uma narrativa complexa e instigante. Cassandra ganha a confiança da família enquanto executa um plano para assumir o controle da casa e conquistar o afeto de seus moradores, eliminando qualquer ameaça ao seu domínio emocional. Seu vínculo com Juno, a filha mais nova, interpretada com carisma por Mary Tölle, revela nuances da robô que apenas se esclarecem perto do desfecho, quando um flashback meticulosamente estruturado revela uma faceta inesperada da ginoide.
A fotografia de Moritz Kaethner recorre ao sépia e a efeitos de interferência para transportar o público a 1965, revelando o trauma que humaniza Cassandra e a aproxima da família Prill. Essas idas e vindas na trama afastam a obra de comparações superficiais com “Black Mirror” de Charlie Brooker, consolidando a originalidade da série. Lavinia Wilson, interpretando a ginoide com um misto de doçura e frieza, entrega uma atuação memorável, tornando Cassandra assustadoramente real.
Com uma carreira de 32 anos no cinema alemão, Wilson transforma “Cassandra” em uma obra de arte provocativa e atual, que reflete sobre a condição humana em tempos de incerteza e dependência tecnológica. A série questiona o que nos torna humanos e até onde as criações digitais podem assumir o controle de nossas vidas. Gutsche orquestra com maestria uma reflexão profunda sobre tecnologia, identidade e poder, desafiando o espectador a encarar o futuro com cautela.
Série: Cassandra
Direção: Benjamin Gutsche
Ano: 2025
Gêneros: Thriller/Suspense
Nota: 9/10