A Netflix, mais uma vez, ousa ultrapassar os limites do entretenimento previsível, desafiando o público a confrontar verdades incômodas em vez de oferecer a escapista leveza do conforto. “Bebê Rena” é vendida como uma comédia sombria, mas sua essência é uma tragédia quase insuportável, repleta de nuances que desafiam interpretações superficiais. O protagonista, Donny, interpretado por Richard Gadd, não é simplesmente um jovem “preguiçoso” ou “autocentrado”, como alguns espectadores apressadamente o classificam. Sua jornada é marcada por uma autodepreciação paralisante e uma incapacidade de se libertar dos grilhões da própria indeterminação. Ele anseia por amor e aceitação, mas está preso à convicção de que não os merece.
Gadd entrega uma performance visceral, uma das mais intensas e angustiantes do ano. Seu Donny é um retrato vivo da fragilidade humana: magro, inquieto, com o rosto cavado pelo cansaço e pela dor emocional que não consegue esconder, por mais que tente. Cada tremor da mandíbula, cada olhar furtivo carregado de medo e submissão revelam um homem que se imagina oculto por uma máscara de normalidade, mas que, na verdade, se desnuda a cada gesto. Sua tragédia é tão profunda que chega a ser excruciante assisti-la, mas esse é justamente o ponto: “Bebê Rena” não quer ser bonita ou divertida. A dor de Donny é esmagadora, manifestando-se nas piadas que se dissipam antes de serem ditas, nos adereços infantis que falham em aliviar seu tormento. E, ainda assim, ele persiste, encontrando na humilhação constante um refúgio estranho e familiar.
A frustração diante de Donny é inevitável. É tentador gritar com a tela, exigir que ele “simplesmente resolva tudo”. Mas então vem a constatação dolorosa: quantas vezes nós mesmos nos dissemos isso, encarando o espelho, acreditando ingenuamente que bastava um empurrão de determinação para sair do abismo? Não é simples. Muitas vezes, parece que não há saída. E Gadd traduz essa impotência com uma força tão real que é impossível não se comover. O clímax de sua jornada é uma catarse esperada e necessária, um momento de autoenfrentamento que une, de forma indivisível, ator e personagem. É atuação no seu estado mais puro, uma revelação crua e sem filtros.
Do outro lado dessa mesma moeda está Martha, interpretada com uma intensidade assombrosa por Jessica Gunning. É fácil odiá-la. Manipuladora, desonesta, repulsiva em sua insistente invasão na vida de Donny. Mas sabemos por que ele não consegue se afastar, não sabemos? A compaixão inicial se mistura a algo mais profundo: Donny reconhece em Martha o mesmo caos emocional que o consome. Ela é uma bomba-relógio prestes a explodir, e Gunning transmite essa dualidade com maestria. Seu rosto oscila entre a euforia, a raiva, o desespero e um vazio estarrecedor, compondo uma personagem que é, ao mesmo tempo, assustadora e profundamente trágica. A relação entre os dois é um jogo perigoso de espelhos distorcidos, um vínculo tóxico que revela a pior face de cada um.
Para além dos protagonistas, o elenco coadjuvante é impecável. Nava Mau, Nina Sosanya, Tom Goodman-Hill e Shalom Brune-Franklin oferecem performances que enriquecem a narrativa e dão corpo a essa história sombria e arrebatadora. O impacto de “Bebê Rena” é tamanho que muitos espectadores foram pegos desprevenidos. O tom inicial e a chamada publicitária sugerem algo mais leve, talvez uma série tragicômica despretensiosa. No entanto, à medida que a trama avança, a escuridão se adensa, revelando uma verdade cruel e brutal. Muitos precisaram recorrer a programas mais leves para amenizar o choque, incapazes de processar de imediato a carga emocional que a série impõe.
Sem entregar spoilers, pode-se dizer que “Bebê Rena” é mais do que uma história sobre um homem e sua stalker. É um estudo sobre dois indivíduos irreparavelmente quebrados: um que destrói os outros e um que se autodestrói, unidos por uma ligação tão disfuncional quanto hipnotizante. A vulnerabilidade necessária para contar essa história é admirável, e a execução, de uma elegância ácida e brutal. Assistir à série não é fácil. Em certos momentos, é dilacerante. Mas para aqueles dispostos a encarar sua brutalidade, existe uma beleza rara e devastadora nessa jornada, enraizada na honestidade com que é contada.
★★★★★★★★★★