O cinema de ação sempre esteve em constante evolução, adaptando-se às demandas de um público que deseja tanto o espetáculo visual quanto tramas que desafiem o convencional. “Velozes e Furiosos: Hobbs & Shaw” não se contenta em ser apenas um derivado da franquia principal, mas um experimento narrativo que questiona até onde um blockbuster pode ir sem trair suas origens. David Leitch, ciente do peso do legado que carrega, usa essa liberdade para transformar a rivalidade entre Luke Hobbs e Deckard Shaw em algo mais do que apenas faíscas de testosterona e golpes bem coreografados. Ele explora a tensão latente entre os protagonistas e, por meio de um roteiro que dosa ação e humor com precisão cirúrgica, constrói um filme que não teme provocar, seja por sua estrutura narrativa distinta, seja pelo modo como questiona os próprios alicerces da franquia.
A essência do filme está na maneira como ele subverte a previsibilidade dos confrontos entre mocinhos e vilões. Em vez de meramente apresentar Hobbs e Shaw como dois heróis forçados a trabalhar juntos, o longa utiliza sua relação conflituosa como um motor para a trama. Essa abordagem gera uma construção de personagens que evita o arquétipo unidimensional, oferecendo camadas inesperadas de complexidade. Se na saga principal os laços familiares são o pilar da narrativa, aqui a conexão entre os protagonistas não se baseia no sangue, mas na necessidade de encontrar um terreno comum. Esse deslocamento tem um impacto profundo na identidade do filme, permitindo que ele flerte com reflexões sobre masculinidade, poder e até mesmo vulnerabilidade sem perder o ritmo alucinante que o público espera.
A construção visual reforça esse deslocamento temático. O filme não se limita às tradicionais ruas urbanas iluminadas por neon e aos carros turbinados em alta velocidade. Leitch brinca com a estética ao inserir elementos que remetem a um futurismo desafiador, evocando a atmosfera de “Blade Runner 2049”. O antagonista Brixton, interpretado por Idris Elba, é um reflexo desse tom: um vilão que parece saído de um futuro distópico, cuja presença magnética desafia os heróis de maneira que transcende a força bruta. Seu embate com Hobbs e Shaw não é apenas físico, mas conceitual, representando um avanço tecnológico que coloca em xeque a humanidade de seus adversários. Essa dicotomia entre o biológico e o sintético adiciona um nível de tensão que vai além das cenas de luta, tornando o confronto uma reflexão sobre até que ponto a evolução pode desumanizar aqueles que buscam poder absoluto.
Essa complexidade também se manifesta na atuação de Vanessa Kirby como Hattie Shaw. Diferente de personagens femininas que costumam ser relegadas ao papel de apoio em filmes desse gênero, Hattie se estabelece como uma força independente dentro da trama. Ela não apenas equilibra a dinâmica entre os protagonistas, mas redefine o papel da mulher em narrativas de ação, sem cair em estereótipos ou depender de validação externa. Sua presença não é ornamental, mas essencial para o funcionamento da história, demonstrando que a franquia, mesmo dentro de seus limites, pode se reinventar.
No fim, o que faz de “Hobbs & Shaw” uma peça fundamental dentro do universo “Velozes e Furiosos” não é apenas sua ação frenética ou seus diálogos afiados. O que o torna memorável é sua capacidade de compreender o próprio gênero e, a partir disso, reconstruí-lo. A grandiosidade não está apenas no espetáculo, mas na forma como ele se reinventa sem perder sua identidade. Enquanto alguns blockbusters se acomodam na previsibilidade, este filme prova que é possível manter a essência e, ao mesmo tempo, questionar os caminhos que levaram até ali. A franquia pode ser sobre velocidade, mas “Hobbs & Shaw” deixa claro que, às vezes, o mais interessante é saber quando mudar de rota.
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