Herman Melville habita um estranho limbo na literatura. Seu nome se esgueira pelas margens das discussões acadêmicas, entre o cânone e o esquecimento popular. Seu “Moby Dick” — monstruoso, inescapável, ressurgente — ergue-se como um dos maiores romances da modernidade, mas seu autor, esse Prometeu dos mares e da linguagem, parece condenado a uma sombra póstuma, relutante em se instalar definitivamente no panteão dos mais lidos. O Brasil cultiva essa negligência: conhece-se a baleia, mas ignora-se o homem. Se perguntarmos a um leitor comum sobre Melville, ele hesitará; mas, se mencionamos a perseguição do capitão Ahab à criatura branca, há um lampejo de reconhecimento, ainda que truncado, limitado a um mero embate entre homem e fera. Não há erro maior em reduzir “Moby Dick” a um simples romance de aventura.
Mas quem foi Herman Melville, esse homem cuja escrita se reconfigurava como possibilidades do romance? Se o escritor nasceu da tempestade e do sal, o homem nasceu da decadência. Sua vida foi marcada pelo lento naufrágio de sua família, uma enraizada nas elites comerciais e políticas de Nova York. Os Melville possuíam laços com a Revolução Americana; seu avô materno, Peter Gansevoort, fora um herói de guerra, enquanto o lado paterno cultivava a sofisticação do velho mundo, importando produtos refinados da Europa. O destino foi impiedoso: as transformações econômicas do século 19 corroeram a fortuna da família, arrastando-a a um desastre resultante.
As raízes de Herman Melville e a ruína familiar
O pai de Melville, Allan, talvez tenha sido o primeiro de seus capitães trágicos. Ambicioso e sonhador, perdeu-se nas águas traiçoeiras dos negócios, acumulando dívidas impagáveis enquanto tentava sustentar um estilo de vida que não mais lhe pertencia. O colapso financeiro trouxe um colapso psíquico: Allan enlouqueceu e morreu prematuramente, deixando à família não apenas a ruína econômica, mas também o estigma da derrota. Melville, ainda jovem, foi arrancado de sua educação formal e lançado ao mundo sem bússola. Foi esse o primeiro ato de sua tragédia pessoal, aquele que o lançou ao mar, não por desejo, mas por falta de escolha.
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É impossível ler “Moby Dick” sem ouvir os fantasmas dessa desintegração familiar. O Pequod, o navio maldito de Ahab, nada mais é do que um microcosmo da própria experiência de Melville: um espaço onde a opressão se impõe de maneira brutal, onde os homens se lançam ao desconhecido na busca de um objetivo absoluto e destruidor. Se o autor aprendeu algo em sua juventude errante, foi que a vida pode ser uma grande travessia rumo ao nada, um impulso cego para uma glória inexistente. O mar, sempre o mar, não apenas moldou sua trajetória física, mas também sua metafísica, sua visão de mundo tornado líquido, assustador, um jogo de forças que sempre arrasta o homem para a ruína.
Há algo de trágico na recepção de “Moby Dick”: é essa desconexão entre a fama do livro e a obscuridade relativa de seu criador. O romance resiste, é reinventado, adaptado, distorcido e simplificado; Melville segue sendo um nome indicado em rodapés, uma citação de passagem em cursos de literatura, um autor de leitura difícil. Mas não há nada de fácil no que ele propôs: ele escreveu um livro que devora seus leitores, que exige, que desafia. Ele não buscou um best-seller, mas uma epopeia do homem moderno, um canto feroz sobre obsessão, poder e o abismo que nos aguarda ao fim de toda travessia.
Não há metáfora mais precisa para a trajetória de Herman Melville do que a própria experiência marítima que marcou sua juventude. Se a ruína financeira da família foi seu primeiro naufrágio, o mar foi seu batismo na realidade bruta, sem ilusões. Diante da impossibilidade de seguir os estudos formais, ele encontrou no oceano sua sala de aula definitiva: as marés ensinaram-lhe sobre o poder, a miséria, a violência e a fraternidade involuntária dos condenados. A primeira viagem, a Liverpool, foi apenas um prenúncio do que viria. O grande chamado viria em 1841, quando Melville embarcou como baleeiro em um navio que partiu de New Bedford rumo ao Pacífico.
Ali, a civilização dissolvia-se no horizonte, e restavam apenas os homens e a caça. O baleeiro não era um navio de aventura, mas uma fábrica flutuante, um matadouro movido a ossos e sangue, uma engrenagem econômica onde os homens eram pouco mais que peças substituíveis. As tripulações eram formadas por sujeitos de todas as partes do mundo, ex-escravos, marinheiros brancos empobrecidos, polinésios, mestiços, todos unidos não pelo desejo, mas pela necessidade. Se há um eco disso em “Moby Dick”, é a composição da tripulação do Pequod, uma Babel errante onde as línguas se misturam e onde os homens, mesmo sem perceber, servem a um propósito maior do que eles próprios, um destino do qual não podem escapar.
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Mas Melville, diferentemente de Ahab, abandonou sua embarcação antes do naufrágio. Desertou em uma ilha das Marquesas, fugindo da brutalidade do trabalho baleeiro, e acabou vivendo por algumas semanas entre os nativos polinésios. A experiência foi romantizada em seu primeiro livro. Vendeu bem e trouxe ao autor um súbito sucesso. O público adorava as narrativas exóticas e as descrições da vida entre os “selvagens”, mas não percebia a ironia: Melville não via os polinésios como bárbaros, mas sim como vítimas da imposição brutal da civilização ocidental; os canibais eram mais humanos do que os missionários, e o verdadeiro terror vinha da “luz” europeia que se impunha sobre as ilhas.
Se tivesse seguido esse caminho, Melville poderia ter sido um autor confortável, um ex-marinheiro que transformava suas memórias em ficção vendável, ajustando-se às demandas do público. Mas ele queria mais. A experiência no mar lhe ensinara que a verdade nunca se resume a uma única perspectiva; a história não é linear, mas múltipla, confusa, cheia de zonas de sombra e lacunas impossíveis de preencher. Ele queria escrever sobre isso, sobre essa falta de sentido que nos governa, sobre a busca incessante por um significado que talvez sequer exista. Foi assim que abandonou o gênero de aventura para escrever algo maior, algo que ainda não tinha nome, algo que anos depois se tornaria “Moby Dick”.
Se os primeiros livros de Melville foram apenas ondas quebrando na praia, “Moby Dick” foi um tsunami. O romance carregava a energia de tudo o que ele havia vivido: o medo e a violência do baleeiro, a desorientação diante do oceano infinito, a insubmissão dos polinésios, o conflito entre razão e instinto, civilização e barbárie, fé e desespero. Tudo se condensou naquele livro imenso, um livro que, como a baleia branca, era impossível de capturar por completo. “Moby Dick” não era um romance como os outros; era um organismo vivo, indomável.
Os primeiros leitores esperavam um relato típico da literatura de prisioneiros: o jovem europeu capturado por um povo bárbaro, sofrendo provas, resistindo à manipulação e, por fim, escapando para a segurança da civilização cristã. Essa era a estrutura clássica do gênero, um formato que encantava os leitores anglo-americanos desde os primórdios da colonização. Melville fez algo diferente. Em vez de demonizar os canibais polinésios, ele os retratou com simpatia, como uma sociedade harmônica e, em muitos aspectos, mais justa do que a ocidental. Os verdadeiros bárbaros, em sua narrativa, não eram os nativos que praticavam rituais incompreensíveis, mas os missionários cristãos e os comerciantes europeus, que impunham sua cultura a ferro e fogo.
Essa inversão de valores foi ousada e provocadora. A ideia de que uma civilização poderia ser mais cruel do que a selvageria minava a lógica do expansionismo ocidental e da chamada “missão civilizadora”. Os leitores queriam um conto de terror e aventura sobre sobrevivência entre canibais, mas Melville entregou um espelho.
Essa estratégia se repetiria em “Moby Dick”, embora de forma ainda mais radical. A bordo do Pequod, Melville cria uma sociedade flutuante composta por homens de todas as raças e origens, uma microcivilização à deriva. Ahab, com sua obsessão destrutiva, encarna o espírito imperialista, o homem branco que acredita ser seu direito subjugar e aniquilar tudo aquilo que escapa ao seu controle.
O movimento de inversão marca toda a obra de Melville: o que chamamos de progresso pode ser destruição; o que vemos como ordem pode ser loucura; e o que acreditamos ser liberdade pode ser apenas mais uma forma de cativeiro. Em “Moby Dick”, essa tensão atinge seu ápice. O navio de Ahab não é apenas um espaço de caça e aventura, mas um teatro de escravidão psicológica, onde cada marinheiro é arrastado para uma busca que não é sua, condenado a servir a um capitão que os conduz para o abismo. Ismael talvez tenha descoberto tarde demais que sua verdadeira prisão não estava entre os selvagens, mas entre os civilizados.
Moby Dick e a alegoria da expansão americana
A escrita de Melville foi forjada em um tempo de instabilidade, um intervalo tenso e febril da história norte-americana. Entre 1846 e 1848, a Guerra Mexicano-Americana expandiu as fronteiras dos Estados Unidos, incorporando vastos territórios ao sul e reforçando a crença no “Manifesto do Destino” — a ideia de que os americanos estavam predestinados a ocupar e dominar toda a extensão do continente. No entanto, essa expansão trouxe consigo um dilema moral inescapável: a escravidão se espalharia por esses novos territórios ou seria contida? O país, que já vivia em um equilíbrio precário entre estados livres e escravistas, caminhava para a ruptura.
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Foi nesse período que Melville escreveu seus principais romances. Suas narrativas, ainda que não fossem explicitamente políticas, eram impregnadas pela atmosfera de seu tempo. “Moby Dick”, publicado em 1851, não é apenas um épico sobre a caça a uma baleia; é uma alegoria da expansão americana, do desejo desenfreado de controle e da arrogância de uma civilização que se crê invulnerável. Ahab, o capitão do Pequod, encarna o espírito imperialista, aquele que se lança ao desconhecido com a crença absoluta de que o mundo pode ser dominado pela força de sua vontade. Mas o que “Moby Dick” sugere de forma devastadora é que essa obsessão pelo poder leva, efetivamente, à destruição.
Se Melville não se posicionava de maneira direta contra a escravidão em seus livros, era porque sua crítica operava de forma mais sutil e insidiosa. Os Estados Unidos da época eram um microcosmo racialmente diverso, uma tripulação formada por homens de diferentes etnias, todos submetidos à autoridade inquestionável do capitão branco. A relação entre poder e subjugação, entre liberdade e servidão, é o cerne da narrativa. A grande ironia é que o próprio Ahab, em sua fúria titânica contra a baleia branca, torna-se o escravo de sua obsessão. O verdadeiro cativeiro não é físico, mas mental, e a liberdade absoluta se revela um mito perigoso.
A escravidão não era o único fantasma que rodeava “Moby Dick”. Havia também o medo crescente do colapso social, da dissolução de uma ordem que, mesmo cruel, ainda era uma ordem. O livro foi publicado em um momento em que os Estados Unidos caminhavam para a guerra civil, e a sensação de que algo catastrófico se aproximava perpassa suas páginas. Não é coincidência que o romance termine com um naufrágio. O Pequod é tragado pelas águas, como se o próprio tecido da realidade fosse incapaz de sustentar tamanha violência. Apenas Ismael sobrevive, flutuando sozinho no oceano, o último resquício de um mundo que já não existe mais.
“Moby Dick” começa com uma frase icônica: “Call me Ishmael”. O narrador, de nome incerto, apresenta-se como um homem sem raízes, que decide embarcar em um navio baleeiro para escapar da monotonia da terra firme. Ele se junta à tripulação do Pequod, um navio comandado pelo enigmático e perturbador Capitão Ahab. Desde o início, há algo de errático na missão: a caça às baleias, que deveria ser um empreendimento comercial, revela-se um projeto de vingança pessoal. Ahab busca apenas uma presa, Moby Dick, o grande cachalote branco que no passado o mutilou, arrancando-lhe uma perna.
À medida que a viagem avança, a tripulação percebe que não está embarcada em uma missão convencional. Ahab conduz os homens com uma retórica messiânica, transformando sua vingança pessoal em um propósito quase metafísico. Starbuck, o imediato, tenta resistir, mas o magnetismo do capitão é irresistível. O Pequod torna-se um espaço de loucura coletiva, onde todos, mesmo contra sua vontade, são arrastados para a cruzada suicida do comandante.
A caça se intensifica quando Moby Dick finalmente é avistado. Durante três dias, o navio persegue a baleia, numa sequência de confrontos brutais que misturam realidade e mito. No clímax da narrativa, Ahab consegue cravar seu arpão na criatura, mas Moby Dick resiste, destruindo o Pequod. No último instante, enquanto afunda, Ahab lança um último desafio ao monstro, mas é tragado para o fundo do mar, enredado em sua própria linha de arpão — símbolo perfeito de um homem consumido pela própria obsessão.
O único sobrevivente é Ismael. Ele se agarra a um caixão transformado em boia e flutua no oceano até ser resgatado. Sua sobrevivência não é apenas física, mas simbólica: ele é o último testemunho do desastre, o narrador que viverá para contar a história. Se o Pequod representa o destino dos impérios e das grandes ambições humanas, Ismael representa a memória, a possibilidade de reflexão e aprendizagem.
Por muito tempo, “Moby Dick” foi um fracasso. O público do século 19 não estava preparado para sua grandiosidade, para sua estrutura complexa, para seus capítulos que se alternam entre a narrativa, o ensaio filosófico e as abordagens minuciosas da anatomia das baleias. Apenas no século 20 o romance foi redescoberto e reconhecido como um dos maiores já escritos.
Hoje, “Moby Dick” é um dos pilares da literatura universal, mas permanece um enigma. A cada nova leitura, revela significados diferentes: é um épico sobre a luta do homem contra a natureza, uma alegoria política, um tratado sobre a obsessão, um estudo sobre o poder e a loucura. A baleia branca não é apenas um animal a ser caçado; ela é um território inexplorado que resiste à domesticação. Para os Estados Unidos do século 19, que se viam como herdeiros de um destino divino de expansão, o oceano era o novo território a ser conquistado. O baleeiro surge, então, como o instrumento dessa empreitada, o braço marítimo do império nascente. Melville abre “Moby Dick” com uma exaltação da caça à baleia, descrevendo-a como a grande indústria de sua época, uma atividade que transformou os mares em territórios americanos. Mas essa exaltação é traiçoeira. Logo percebemos que essa indústria tem um custo humano e moral que poucos estão dispostos a reconhecer.
A metáfora do baleeiro como símbolo do expansionismo americano não é sutil. Durante o século 19, os navios baleeiros dos EUA navegavam por todo o Pacífico, dominando ilhas, explorando populações locais e transformando o oceano em uma nova fronteira de exploração. O Pequod, com sua tripulação multirracial e seu capitão inflexível, funciona como um microcosmo dessa expansão. Ele carrega a promessa do progresso, mas também o germe da destruição. A missão de caça à baleia poderia ser vista como um reflexo da ideologia expansionista: uma jornada em busca da dominação total sobre a natureza. Mas o que Melville nos mostra é que esse ímpeto não leva à grandeza, e sim à ruína.
Em certo sentido, “Moby Dick” antecipa a crítica que muitos fariam ao imperialismo americano no século 20. O impulso de conquista, tão celebrado na retórica da época, revela-se, na prática, uma condenação ao desastre. O próprio baleeiro, essa máquina de dominação, está fadado a perecer. A imagem final do Pequod sendo tragado pelo oceano antecipa o destino de todo império que se expande sem medir as consequências de sua ambição. O mar, ao contrário da terra, não pode ser apropriado indefinidamente; ele engole tudo, indiferente ao poder humano.
Essa leitura ganha ainda mais força quando analisamos a figura do capitão Ahab. Ele não é apenas um caçador; é um déspota. Sua obsessão por Moby Dick não é apenas pessoal, mas uma metáfora do espírito totalitário que cresce no coração do poder. Como todo tirano, Ahab não permite dissidência. Ele governa com punho de ferro, convencido de que sua visão é a única verdade possível. Starbuck, o imediato, representa uma resistência tímida, mas inútil; sua consciência tenta alertá-lo sobre o absurdo da missão, mas Ahab já se tornou surdo a qualquer voz que não seja a de sua própria obsessão.
Há algo de messiânico na figura de Ahab, um caráter profético que ressoa com os líderes totalitários do século 20. Ele não apenas busca Moby Dick, ele transforma essa busca em um ideal absoluto. Ele convence sua tripulação de que essa jornada é inevitável, necessária, sagrada. Sua autoridade não vem apenas da força, mas da capacidade de sedução. Como os grandes líderes autoritários, ele não impõe sua vontade apenas pelo medo, mas também pelo fascínio. Seu discurso, hipnótico e inflamado, envolve os marinheiros em um delírio coletivo. Eles não seguem Ahab porque são obrigados, mas porque são enfeitiçados por sua determinação.
Essa é a verdadeira tragédia do Pequod: ele não é apenas um navio que afunda, mas uma sociedade que se autodestrói. Melville nos mostra que os impérios não caem apenas por fatores externos, mas pela corrosão interna provocada por seus próprios líderes. Ahab simboliza a figura do governante que conduz seu povo à ruína em nome de uma causa que talvez nunca tenha existido de fato. Moby Dick, a baleia, pode ser vista como um delírio, um inimigo imaginário contra o qual Ahab projeta todas as suas frustrações. Ele sacrifica tudo — tripulação, seu navio, sua própria vida — para lutar contra uma entidade que pode não ter nenhuma intenção real contra ele.
Essa dimensão paranoica de Ahab ressoa com a lógica dos regimes totalitários. Ele vê ameaças onde talvez não existam. Ele transforma um animal em um inimigo, da mesma forma que ditadores constroem inimigos invisíveis para justificar sua sede de poder. Ele acredita que eliminar Moby Dick restaurará alguma ordem, dará sentido à sua existência. Mas a verdade é que não há sentido algum. A baleia simplesmente é, indiferente à sua perseguição. O verdadeiro horror do romance não está na besta, mas na necessidade humana de criar monstros para combatê-los.
Não é difícil traçar paralelos entre Ahab e figuras históricas como Napoleão, Hitler ou até mesmo certos líderes contemporâneos. Todos compartilham a crença inabalável de que possuem um destino único, uma missão transcendental que deve ser cumprida a qualquer custo. Todos sacrificam seguidores fiéis em nome de um ideal impossível. Todos terminam da mesma maneira: derrotados, tragados por suas próprias obsessões. Melville entendeu que o verdadeiro perigo não está nas forças externas que ameaçam um império, mas na loucura de seus líderes.
A narrativa de “Moby Dick” nos alerta sobre o preço da obediência cega. Os marinheiros do Pequod poderiam ter se rebelado, poderiam ter abandonado Ahab, poderiam ter reconhecido a insensatez de sua missão. Mas foram seduzidos pela retórica do líder e, quando perceberam o engano, já era tarde demais. O romance nos obriga a questionar nossa própria posição diante do poder. Quantas vezes seguimos líderes insanos por medo ou fascínio? Quantas vezes aceitamos missões destrutivas apenas porque nos disseram que eram necessárias?
Mas se Ahab representa a tirania, Ismael representa a sobrevivência. Ele é o único que escapa ao naufrágio porque nunca esteve totalmente integrado à loucura coletiva do Pequod. Ele observa, reflete, mas não se deixa consumir pela obsessão de seu capitão. Seu papel como narrador é essencial: ele é aquele que carrega a memória da tragédia, que pode contar a história e, talvez, impedir que se repita.
O baleeiro, que começou como símbolo da glória americana, termina como ruína. Ahab, que se via como mestre de seu destino, afunda junto com sua própria arrogância. E Moby Dick, essa entidade grandiosa e enigmática, segue nadando, intacta, alheia a toda a destruição que deixou para trás. No fim, a verdadeira vitória pertence ao oceano, essa força incontrolável, que devora homens e impérios sem remorso.
“Moby Dick” permanece um dos mais poderosos testemunhos sobre o espírito de dominação e seus desdobramentos trágicos. Seu retrato do poder não envelhece, porque o ciclo da história se repete. A busca pelo controle, seja sobre uma baleia, seja sobre um território, um povo, sempre leva ao mesmo fim. O destino de Ahab e do Pequod é o destino de todos os impérios que se constroem sobre o delírio de que algo ou alguém pode ser completamente subjugado. Mas o mar sempre terá a última palavra.
O mistério da baleia branca e o legado universal de Melville
A brancura de Moby Dick é um dos enigmas centrais do romance. Melville dedica um capítulo inteiro ao significado da cor branca, explorando sua ambiguidade e seu potencial simbólico. O branco pode representar a pureza, a transcendência, a perfeição, mas também o vazio, o abismo, o horror do infinito. A baleia, ao contrário dos monstros convencionais, não é negra, não se esconde nas sombras. Ela é um espectro reluzente, visível e incontestável, presença que desafia qualquer tentativa de explicação. Seu brilho não reconforta, mas inquieta, pois revela algo que a mente humana não consegue abarcar.
Se pensarmos no século 19, o branco era também a cor do poder. As elites europeias e americanas associavam a palidez à nobreza, à superioridade racial, à luz da civilização. A baleia Moby Dick subverte essa lógica. A baleia branca não é símbolo de domínio, mas de resistência. Ela escapa à classificação, à captura, à apropriação. Diferentemente das outras baleias, que são reduzidas a mercadorias, Moby Dick permanece intocada. Sua brancura não significa domesticação, mas indomabilidade.
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E é justamente essa impossibilidade de controle que transforma a baleia em um inimigo absoluto. Para Ahab, a mera existência de Moby Dick é uma afronta à sua autoridade, uma negação de seu poder. Se uma baleia pode viver fora do alcance humano, então o domínio do homem sobre a natureza não é total. O cachalote branco se torna uma anomalia intolerável, um ponto fora da ordem universal. Como todo tirano, Ahab não suporta a ideia de que algo possa escapar ao seu controle, e por isso precisa destruir Moby Dick — sua existência desafia sua visão de mundo.
A baleia branca funciona como um arquétipo do “Outro” incontrolável, que precisa ser eliminado para que a ordem fique intacta. Em diferentes momentos, esse “Outro” já foi uma raça, uma ideologia, um povo ou um conceito que se recusava a se encaixar nas categorias predefinidas. Moby Dick é tudo aquilo que a mente humana não pode reduzir a um esquema simplista, tudo o que resiste à interpretação única, à apropriação, à mercantilização. Ela é, ao mesmo tempo, o sonho do absoluto e o terror do inominável.
A grande ironia do romance é que, ao perseguir a baleia, Ahab prova exatamente aquilo que tenta negar. Ele quer demonstrar que o homem pode dominar todas as coisas, mas sua obsessão só serve para reafirmar sua impotência. No final, a brancura da baleia não é nem a cor da vitória nem a do fracasso, mas a do mistério. Moby Dick sobrevive, porque sempre sobrevive aquilo que não pode ser compreendido. O mar, como a baleia, é eterno, e o homem não pode fazer nada além de desaparecer em suas águas.
Desde sua publicação, o livro tem sido um desafio para leitores, críticos e adaptadores. A estrutura do romance é deliberadamente desconcertante: alterna entre ação e ensaios filosóficos, entre observações minuciosas de cetologia e passagens que beiram o delírio metafísico. Para um público experiente com narrativas lineares e consistentes, a obra se apresenta como um monstro tão impenetrável quanto a própria baleia que persegue. Ao longo dos séculos, diversas adaptações pretendem torná-lo mais acessível, mas quase sempre ao custo de reduzir sua complexidade a uma aventura marítima.
A simplificação da obra é compreensível, mas problemática. Ao retirar os capítulos digressivos e filosóficos, as adaptações traem a essência do livro, convertendo-o em uma história de perseguição de um homem contra um monstro, como se fosse apenas um romance de ação. Mas a obsessão de Ahab não é apenas uma fúria pessoal contra um animal: ela é uma alegoria do desejo humano de controle absoluto, um reflexo da megalomania dos impérios, uma representação da destruição que acompanha todo projeto de dominação. Quando as adaptações deixam de lado essas camadas, elas não estão apenas simplificando a história, mas traindo seu significado mais profundo.
A obra desafia a própria noção de protagonista. Ahab é um personagem magnético, mas não é um herói no sentido tradicional. Ele é tirânico, insano, destrutivo, e sua obsessão nos repele tanto quanto nos fascina. Ismael, o narrador, é um observador passivo, que sobrevive apenas porque não se deixa consumir pela loucura do capitão. Em uma narrativa convencional, teríamos um protagonista ativo, um arco de redenção, um clímax que levasse a uma lição clara. Mas o romance não oferece conforto: ele nos afoga na incerteza e no vazio. Como transformar isso em um enredo que agrade ao público?
Outra dificuldade está na própria linguagem de Melville. Seu estilo é grandioso, repleto de referências bíblicas, mitológicas e filosóficas. Ele não apenas narra a história, mas a tece com um vocabulário que remete a Shakespeare e à poesia épica. Suprimir isso em uma adaptação significa empobrecer sua grandeza. Uma versão que remove as digressões de Ismael ou a retórica inflamada de Ahab está, essencialmente, amputando a alma do romance.
Mas o esforço de adaptação não deve ser descartado. Se as versões simplificadas incorrem no risco de distorcer a obra, são elas que introduzem novos leitores ao universo de Melville. Muitas pessoas chegam ao livro depois de assistir a um filme ou ler uma versão condensada. O perigo é acreditar que essas adaptações são equivalentes ao original, quando, na verdade, são apenas sombras pálidas de algo muito mais vasto.
Lembro-me de quando ouvi Rachel de Queiroz dizer que “Moby Dick” era seu livro favorito. Eu era adolescente, curioso, ainda aprendendo a reconhecer a grandeza na literatura. O que me marcou não foi apenas a predileção dela, mas a forma como afirmou que, através desse romance, era possível saber tudo sobre a vida e sobre a própria literatura. Aquilo ficou ressoando em mim como um mistério. Como poderia um único livro conter a totalidade do mundo? Fui ler pela promessa de Rachel. Fiquei maravilhado, mas sem compreender totalmente o que a fazia amá-lo tanto.
Após outras leituras, tenho três hipóteses sobre a predileção de Rachel de Queiroz. A primeira é que ela, filha de um Brasil árido e rude, reconhecia em Melville a brutalidade da natureza e a insignificância do homem diante dela. Rachel, que escreveu “O Quinze”, entendia o desespero de lutar contra forças que não podem ser domadas — no sertão, o sol e a seca; no oceano, a baleia e a tempestade. Em segundo lugar, Rachel, mulher forte num mundo de homens, poderia ter se identificado com Ismael, o narrador que observa, que sobrevive, que escreve. Ela, como ele, foi testemunha de obsessões masculinas que destruíram tudo ao redor. Terceiro, o gosto pela grandeza épica, a ambição da forma. Rachel era uma prosadora que prezava pela concisão, mas admirava o excesso melvilliano, a grandiloquência, a liberdade com que ele conduzia sua narrativa, como um mar revolto onde a história ora afunda, ora ressurge em digressões.
Compreendo agora a paixão de Rachel, ainda que à minha maneira. Pois eu sei por que reverencio essa obra. Sendo um leitor de clássicos, vejo que “Moby Dick” é um clássico infinito por três motivos: é inesgotável — nenhuma leitura o esgota, nenhuma interpretação é definitiva, ele cresce e se transforma cada vez que revisitamos suas páginas. Segundo, porque é uma alegoria universal, aberta a todas as leituras possíveis: já foi lido como um épico do homem contra a natureza, como uma parábola do totalitarismo, como uma crítica ao imperialismo, como um tratado sobre a obsessão humana. Terceiro, porque ele desafia a própria noção de romance, rompendo com qualquer forma pré-estabelecida e criando sua própria lógica narrativa, um livro que se escreve e se desfaz dentro de si mesmo.
É um livro que exige coragem. Coragem para aceitar a imensidão de seu escopo, para não se perder em suas páginas vastas como o oceano, para não se apegar a certezas, pois ele não oferece certezas. Ele oferece a vertigem. Ele nos obriga a olhar para o abismo e a nos perguntar, como Ahab, se o mundo tem um sentido ou se somos apenas homens à deriva, perseguindo fantasmas.
Mas há beleza nessa incerteza. Há uma espécie de libertação em saber que nem tudo pode ser compreendido, que nem toda baleia precisa ser capturada. “Moby Dick” nos ensina a aceitar o indomável, a viver com a dúvida, a navegar sem bússola. E talvez esse seja o verdadeiro sentido da literatura: não nos oferecer respostas, mas nos lançar ao mar, com um livro como único bote.
É um romance para quem ama a linguagem, para quem a vê como um oceano, com seus perigos e surpresas, seus mistérios. Ler “Moby Dick” é se deixar levar por esse mar, sabendo que jamais chegaremos a um porto definitivo, mas seguiremos, como Ismael, sobrevivendo às tempestades, flutuando entre as palavras, porque é isso que fazem os que amam a literatura. Eles se agarram ao texto e seguem.