Não consigo confiar em quem não sente ciúmes de mim

Não consigo confiar em quem não sente ciúmes de mim

Eu poderia ter vivido um grande amor, mas por falta de orçamento para investir em novas lingeries e relutante quanto à separação de corpos com o meu estimado sofá, optei pelo meu moletom e alguns livros. Não precisei fingir normalidade, nem simpatia em excesso. Não dissimulei interesse por assuntos tolos. Não tive que engolir espontâneos palavrões enquanto sorria em tom pastel, feito a Mona Lisa. Não ponderei entre ser difícil demais, fácil demais, previsível demais, sensual demais ou sagaz de menos. E o melhor de tudo: não fui impelida a comparecer às festas de família, portanto não fui apresentada à sogra.

Confesso que tenho uma enorme preguiça de conhecer gente nova. Primeiro porque me sinto passando por uma rigorosa inspeção acerca do meu biotipo, como se as minhas medidas fossem pré-requisito essencial para que eu me torne interessante. Transpondo o primeiro crivo, chega o momento em que preciso abrir a boca e ter uma boa retórica sobre os meus pontos fortes. E quais seriam mesmo? Além de antissocial, eu sofro de timidez aguda. Para complicar a minha situação, ainda por cima eu falo dois tons abaixo da frequência sonora normal. Me resta sorrir e torcer para que não me perguntem nada. Mas sempre tem um caboclo insistente e irritantemente cortês que me intima a discursar. Trato de economizar palavras para dizer que estou solteira e que não tenho o menor interesse em alterar o placar do jogo.

É seguido o momento de contar sobre a minha profissão. Jornalistas já foram muito respeitados em outras épocas. Éramos vistos como pessoas admiráveis, influentes, inteligentes e cultas. Hoje, quando digo que sou jornalista, inevitavelmente me perguntam se eu sou blogueira ou youtuber. É o sepultamento do meu ofício. Me lembro quando aos 7 anos escolhi o meu futuro e, toda orgulhosa, contei para os meus pais que seria responsável por informar as notícias do mundo inteiro. Minha mãe, uma mulher de fé e positividade, já me viu na bancada do jornal da noite. Meu pai, inconformado por natureza, fez de tudo para influenciar o meu destino. Me incentivou a jogar tênis, a andar de patins, me levou nas aulas de balé e piano. Notando que não surtia resultado, foi pelo caminho inverso. Fez a minha matrícula no karatê e tentou me persuadir para que eu fosse militar, bancária e até mesmo fiscal do imposto de renda. Qualquer coisa era melhor do que ser jornalista. Homem visionário, o Seu Antônio. Se tivesse lhe dado ouvidos eu não estaria aqui hoje para contar essa história.

Mas nem sempre fui assim. Houve uma época na qual estava sentimentalmente disponível e até cheguei a traçar inusitados perfis de pretendentes. O rapaz deveria ser preferivelmente filho único, partindo do princípio de que quanto menor é o círculo familiar, mais escassos são os conflitos. Os homens com gene ermitão me atraíam imensamente. Entenderiam a minha solidão sem carência afetiva e provavelmente não cobrariam afago excessivo. Precisaria fazer concordâncias nominais e empregar, pelo menos, o verbo no infinitivo corretamente. Dentre outras estranhezas, eu exigia que o possível aspirante a se relacionar intimamente comigo fosse — acreditem — ciumento.

Eu sempre confiei em pessoas ciumentas. E como toda união só se mantém na base da confiança, estava intencionada a juntar a fome com a vontade de comer. Gente ciumenta é confiável por vários motivos. O primeiro deles é que a sua atenção está integralmente voltada para você e não existe foco maior que você. Veja bem, não vamos confundir ciúmes com carência. O carente é pegajoso, cobrador de afeto. Já o ciumento não necessariamente é afetuoso. O seu diferencial está no poder de observação, e por assim dizer, na cadência com que os seus cinco sentidos giram ao seu redor. Outro motivo é que as pessoas ciumentas sempre demonstram o que sentem e como se sentem. Podem tentar disfarçar, controlar, porém é de praxe que em algum momento elas manifestem o seu ciúme. Quer coisa melhor do que alguém sem filtro no meio desse bando de dissimulados? Pensa bem. Não dá para confiar nessa gente morna, equilibrada e contida.

Uma pena que nenhum site de relacionamento se aprofunde nas características. Se existissem opções sobre personalidade, transtornos, manias e genialidade seria bem mais divertido e sedutor! Eu sei que poderia ter vivido um grande amor, mas estava frio demais para sair de casa. Eu poderia ter sido fiscal do imposto de renda, poderia ter sido campeã olímpica, poderia ter sido youtuber. Eu poderia ter sido a Globeleza sem glúten e com baixa melanina, ter escrito um romance em Paris, ter tido um caso com o Enrique Iglesias, ou ter sido esquartejada por um maluco ciumento cruzando a Ipiranga e a Avenida São João. Vai saber. Estava frio demais para sair de casa. Eu sei que poderia ter vivido um grande amor…

 

Karen Curi

é jornalista.