O trânsito testava a minha sanidade mental. Não eram nem oito horas da matina e já me encontrava preso num engarrafamento. Pensava numa garrafa de café, em pães de queijo e na resenha. Apenas a música me redimia. Mais ou menos. Ouvia pelo rádio uma versão ao vivo do Michael Mcdonald, antigo vocalista do The Doobie Brothers, desafinando reiteradas vezes ao cantar “What a fool believes”. Simplesmente, não conseguia atingir as notas mais altas. Dentre tantas sacanagens reservadas pela senectude aos seres humanos, sucedia o endurecimento das cordas vocálicas, que estorvava os falsetes e os agudos.
Enquanto me aborrecia com os derrapadas vocais do icônico cantor norte-americano, notei a presença de uma dupla que conversava do outro lado da rua, sob a cobertura metálica de um ponto de ônibus. Era um homem velho e um rapaz. Senti um imediato banzo de saudade. A aparência do velhote lembrava meu pai: magricelo, nariz adunco, estatura mediana, cabelos lisos e levemente grisalhos, camisa listrada de mangas longas, cuja extremidade inferior estava enfiada dentro da calça de gabardine, meias sociais pretas e o tênis multicolorido destoando de tudo. Espalhafatoso e comovente. Nada que fosse da minha conta, obviamente.
O moço aparentava 30 anos, era branco, gorducho e parecia auxiliar o senhorzinho na leitura do QR Code que estava fixado numa pilastra, o qual informava os destinos e os horários que os coletivos encostavam naquela parada. Em tese, o idoso não conseguia fazer sozinho o manuseio do tal dispositivo com o smartphone e teria pedido ajuda ao estranho. Acreditar nas pessoas eram aquele tipo de tolice que os velhos faziam. Em dado momento, o rapagão arrancou o telefone das suas mãos e escapou correndo ladeira abaixo. O velhinho esboçou uma reação, ensaiou perseguir o farsante, mas acabou tropeçando nas próprias pernas e se estatelando na calçada. Duas mulheres que saíam de uma drogaria ajudaram-no a se recompor.
Teria descido do meu possante para acudir o sósia de papai, ou mesmo para perseguir o larápio covarde. Entretanto, a sinalização de trânsito informava que era proibido parar ou estacionar naquela avenida. A despeito da placa do departamento de mobilidade urbana, eu continuava irremediavelmente imóvel na hora do rush. Ainda era cedo, mas já me sentia amofinado o bastante para querer dar marcha a ré e voltar para casa como um vencido. Não tinha volta. Molengas como eu precisam aceitar isso.
Havia uma infinita fila de veículos enfileirados até o próximo semáforo. Dava para ver os motociclistas exasperados se arriscando, se espremendo nos corredores entre os carros, escoiceando como animais os retrovisores. Perto da faixa dos pedestres, artistas de rua e vendedores ambulantes defendiam seus trampos. Uma ambulância pedia passagem pela saúde de um pobre diabo. Um sujeito serpenteava entre os veículos com uma bolsa de colostomia pregada no abdome, puxando a camiseta para o alto cima e esfregando o polegar contra o dedo indicador. A economia do país tava uma merda.
Sentimentos de fúria e de melancolia atropelavam-me. Pensei novamente no meu velho, naquele dia em que fora assediado, ludibriado e roubado por um casal de malandros dentro de uma agência bancária. Não dava para conversar com estranhos, muito menos, para confiar neles. O dia estava com aquela cara safada de segunda-feira. O trânsito estagnara. O sol rachava a moleira dos transeuntes. O Michael McDonald, quem diria, rateava, dava um migué, fugia dos agudos.
Se papai estivesse vivo, ele diria “nada acontece por acaso, meu filho”. São em coisas assim que os tolos acreditam. Embora, nem sempre, consigam transferir tais tolos ensinamentos para os seus descendentes tolos. C’est l avie.