O amor, quando rompido por forças externas, pode se tornar um espectro que assombra tanto os que amam quanto os que destroem. “Desejo e Reparação”, dirigido por Joe Wright e baseado no romance de Ian McEwan, não se limita a contar uma história de paixão e perda; ele se debruça sobre a maneira como moldamos as lembranças para justificar nossas ações e aliviar nossas culpas. O filme é um exercício de metalinguagem que desmonta a ilusão de que o passado pode ser corrigido, explorando as cicatrizes invisíveis que permanecem mesmo quando tentamos rescrever o que já aconteceu.
O coração da trama bate no relacionamento impossível entre Robbie Turner (James McAvoy) e Cecilia Tallis (Keira Knightley), separados não apenas por barreiras sociais, mas por um erro irreversível cometido pela jovem Briony Tallis (Saoirse Ronan). Filho da empregada da família Tallis, Robbie cresceu à sombra dos privilégios que nunca pôde compartilhar, até que, na juventude, percebeu que havia algo entre ele e Cecilia — um desejo silencioso, uma atração reprimida pelo orgulho. Briony, uma criança de imaginação fértil, testemunha fragmentos desse romance e, sem compreender seu significado, reconstrói a narrativa de acordo com sua própria visão, transformando o desejo legítimo em um crime hediondo. Seu testemunho falso condena Robbie, separando-o de Cecilia e destruindo qualquer possibilidade de futuro para ambos.
A forma como Christopher Hampton adapta o texto de McEwan mantém a complexidade da obra original, respeitando sua estrutura fragmentada e a maneira como o tempo é manipulado para reforçar a ideia de lembranças distorcidas. O filme transita entre a opulência do casarão da família Tallis, onde os eventos são filtrados pela percepção enviesada de Briony, e a brutalidade da Segunda Guerra Mundial, onde Robbie é forçado a lutar em troca de uma liberdade que nunca virá. A fotografia de Seamus McGarvey amplifica essa dualidade, criando um contraste marcante entre o refinamento da elite britânica e o desespero daqueles que foram jogados à guerra.
Entre os momentos mais impactantes do filme está a sequência da retirada de Dunquerque, um longo plano-sequência que captura o horror e o caos do front, enquanto Robbie caminha entre destroços e soldados mutilados. Essa cena, além de impressionante tecnicamente, serve como uma metáfora para sua jornada: um homem que caminha sem destino, assombrado pelo passado e pelo amor que lhe foi roubado. Enquanto isso, Cecilia se afasta de sua família, recusando-se a perdoar a irmã e se agarrando à memória de Robbie como única âncora de sua existência.
Mas “Desejo e Reparação” não se trata apenas da tragédia de Robbie e Cecilia. Trata-se, sobretudo, de Briony. A garotinha que destruiu vidas se torna uma mulher que carrega um fardo insuportável, tentando, sem sucesso, reparar o que fez. Quando, já idosa (interpretada por Vanessa Redgrave), surge no último ato, ela revela ao espectador um dos momentos mais devastadores do filme: toda a esperança de redenção foi uma ilusão. O reencontro entre Cecilia e Robbie, suas conversas, seus planos — tudo não passa de um ajuste na narrativa feito por Briony. Na realidade, eles nunca tiveram uma segunda chance. Ambos morreram antes que pudessem se reencontrar, e o que o público testemunhou foi apenas a tentativa de uma escritora de reescrever sua própria culpa.
O peso dessa revelação transforma o filme em algo maior do que um simples drama romântico. Ele se torna uma reflexão sobre a forma como usamos a ficção para compensar as dores do passado. Briony pode alterar os eventos em suas palavras, mas não pode devolver a vida a Robbie ou oferecer a Cecilia um final feliz. Sua reparação é uma mentira piedosa — para ela, para o público e para os fantasmas que criou.
A trilha sonora, marcada pelo ritmo hipnótico de uma máquina de escrever, reforça essa metalinguagem, lembrando constantemente que a história que estamos vendo não é confiável. James McAvoy e Keira Knightley entregam performances dolorosamente reais, sustentando o peso de um amor que nunca pôde se concretizar. Saoirse Ronan, em um dos primeiros papéis de sua carreira, captura a essência de Briony: uma menina que, sem perceber, destruiu vidas, e uma mulher que, mesmo compreendendo a extensão de seus atos, nunca conseguiu se perdoar.
“Desejo e Reparação” não é apenas um filme sobre um amor impossível. É um lembrete cruel de que algumas verdades são irremediáveis e que, por mais que tentemos, nem todas as histórias podem ser corrigidas. O que resta, no fim, são as versões que escolhemos contar — e as que precisamos acreditar.
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