Obra-prima no Prime Video: o filme que conquistou o Oscar e é aclamado como um dos maiores de todos os tempos Divulgação / 20th Century Fox Home Entertainment

Obra-prima no Prime Video: o filme que conquistou o Oscar e é aclamado como um dos maiores de todos os tempos

Se todo ser humano sobre a face da Terra é digno da compaixão divina, não deveria haver problema algum no interesse de uma freira católica por um assassino cruel, a alguns metros do corredor da morte, certo? Bem, todos sabemos que não é exatamente assim, e nesse diapasão vibra “Os Últimos Passos de um Homem”, um dos filmes mais sofisticados da história do cinema. Uma vez que aviões em queda livre convertem muito mais pessoas que religiões — e em menos tempo —; Deus pode ser o que quer que desejemos; ninguém é capaz de saber o que se passa no coração de um homem se não Aquele que conhece nossa alma antes que nos formássemos no ventre materno: postas à mesa todas essas confabulações, não deveria causar escândalo a postura de Helen Prejean, a protagonista da história real que expôs em “Dead Man Walking — An Eyewitness Account of the Death Penalty in the United States” (“o caminhar de um homem morto — o relato de uma testemunha ocular sobre a pena de morte nos Estados Unidos”, em tradução livre; 1993), notas biográficas compostas de registros emocionados e reflexões acerca de um dos instrumentos jurídicos mais controversos já criados.

A pena capital é alvo da lembrança de Prejean, membro da ordem das Irmãs de São José de Médaille, sediada em Nova Orleans, e ela volta a 1982, quando tornou-se conselheira espiritual de Elmo Patrick Sonnier (1950-1984), o assassino de dois adolescentes sentenciado à morte pela recém-instituída injeção letal, procedimento menos bárbaro, segundo as autoridades, mas que também guarda suas tão particulares abominações.

Em “Os Últimos Passos de um Homem”, Sonnier vira Matthew Poncelet, que escreve a Prejean pedindo por uma visita. A freira não é bem uma ortodoxa, e causa espécie ao capelão Farley de Scott Wilson (1942-2018) até por não usar hábito, o que bateria de frente com uma determinação de João Paulo 2º (1920-2005), o papa de turno. Ao cabo de alguns esforços quanto a dissuadi-la, o padre termina por aquiescer, e Prejean afinal conhece Poncelet, um homem branco de 32 anos, olhos de um azul brilhante, cavanhaque ralo e um vasto topete, disposto a desafiá-la. 

O diretor-roteirista Tim Robbins elabora o estranhamento de parte a parte nos olhares que os dois trocam, e em momento algum o prisioneiro hesita em admitir que esteve, sim, no bosque afastado onde os dois adolescentes foram surpreendidos fazendo sexo, mas enfatiza que não dera nenhum dos golpes que os mataram, e sequer olhara direito para a moça, estuprada antes de perder a vida. Ele quer de Prejean um apoio para agitar a opinião pública e divulgar uma moção em que fala de seu estado, mas não recua em sua ofensiva. Ele confessa, como se precisasse, que aquela é a primeira vez em muito tempo que ele vê uma mulher de perto, e elogia sua beleza. Ela responde que não está ali para entretê-lo.

A essa altura, qualquer um já se pergunta sobre se Poncelet é mesmo culpado ou se a aproximação de Prejean é de fato puramente humanista, e então o filme começa a alcançar seu objetivo. Numa audiência sobre uma possível revisão da pena, a freira conhece os pais das vítimas, e um outro arco dramático se levanta. Um névoa de hostilidade paira sobre Prejean e seus interlocutores, e dias mais tarde, quando vai visitar Earl Delacroix, o pai do rapaz assassinado vivido por Raymond J. Barry, fica sabendo que ele e a esposa estão se separando. 

Algum tempo depois, na casa de Clyde e Mary Beth Percy, outra bomba explode no colo de Prejean quando ela é obrigada a revelar que não fora até lá para dizer-lhes que mudou de ideia e não irá mais interceder pelo preso. Robbins é genial ao encadear minudências da índole de Poncelet que inspiram asco até na mais santa das criaturas, como uma entrevista dele dando a entender que simpatiza com o arianismo, um novo empecilho para Prejean, agora malvista pela comunidade afro-americana do bairro pobre onde realiza seu trabalho filantrópico com a irmã Colleen, o providencial respiro cômico da carismática Margo Martindale. 

As questões morais mais graves da existência permeiam “Os Últimos Passos de um Homem” até a última cena, especialmente quando da iminência da execução de Poncelet, que malgrado os esforços de sua protetora, sempre soube que esse seria seu fim — e não parecia lá muito perturbado com isso. Num desempenho poderoso, Sean Penn une técnica ao sentimento mais obscuro e indevassável, aprimorado em longas igualmente necessários feito “Milk: A Voz da Igualdade” (2008), de Gus Van Sant. 

Generoso, Penn serve de escada ao talento ímpar de Susan Sarandon, num personagem escrito por Robbins, seu então marido, para ela. Em raras ocasiões na história da Academia um Oscar de Melhor Atriz foi tão merecido e foi tão simbólico, uma dupla homenagem justa, a Sarandon e a Helen Prejean, que segue a trilhar a senda ingrata da defesa dos direitos humanos de quem está à margem da margem. Restabelecida em julho de 2019, após um intervalo de dezesseis anos, a pena capital continua patrocinando injustiças sem remédio, sem confortar aqueles que ficam aqui embaixo, degredados e furiosos, penando nesse eterno vale de lágrimas cada vez mais confuso. 

Filme: Os Últimos Passos de um Homem
Diretor: Tim Robbins 
Ano: 1995
Gênero: Crime/Thriller
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.