Distopia ou realidade? O clássico de George Orwell que chocou o mundo agora está no Prime Video Divulgação / 20th Century Fox

Distopia ou realidade? O clássico de George Orwell que chocou o mundo agora está no Prime Video

A luta pela sobrevivência impele-nos a assumir uma postura mais agressiva diante dos outros e esse personagem não demora a ser incorporado à nossa natureza, com a providencial ajuda das várias dificuldades que se agigantam nos cenários extremos em que a vida, caprichosa, transforma-se num palco tétrico onde se chega para matar ou para morrer. Indivíduos são esbulhados de seu arbítrio e de sua sensibilidade e se convertem num prolongamento da consciência coletiva, não pensam mais pela própria cabeça e veem-se obrigados a se submeter a expedientes os mais vis, não por covardia, mas por não poderem contar com ninguém. 

Ao suscitar questões como truculência policial, intolerância, patrulhamento ideológico, políticos ineptos, juventude perdida e delinquente, “1984” é um monumento imperecível à liberdade em seu conceito mais elementar, partindo dele para elaborações bem mais sofisticadas e herméticas, que até passam batidas em meio à insânia do nosso tempo, capaz de converter em democracias governos flagrantemente abusivos e mesmo totalitários. Publicado em 1949 por George Orwell (1903-1950), “1984” de tempos em tempos balança a letargia que abestalha-nos a todos, decerto porque a realidade sempre consegue ser mais cruel. A adaptação de Michael Radford para o clássico de Orwell fixa-se, por evidente, na estética lúgubre da distopia criada pelo escritor — com o realce impecável da fotografia de Roger Deakins —, mas, como obra-prima que é, supera a mera experiência contemplativa e prova-se atual como nunca.

Hoje é mais difícil que líderes arbitrários durem ad aeternum, sobretudo no Ocidente. Contudo, tiranos dos mais distintos matizes ideológicos vêm e vão à mercê das circunstâncias, achando refúgio em momentos históricos nos quais o cidadão está mais fragilizado, a exemplo do que aconteceu em 2016, nos Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump. O magnata do mercado imobiliário acaba de voltar à Casa Branca, e é inevitável lembrar Karl Marx (1818-1883) sua lapidar sentença acerca da unicidade da História, que jamais se repete, e se o faz, o segundo episódio é mera farsa. Trump é agora muito mais poderoso e influente que há uma década, tendo no bolso os donos das big techs mais importantes da praça, o que, convenhamos, é uma mão na roda para que viabilize seu projeto de dominar o mundo, tão caricato quanto perigoso. 

O presidente americano é o próprio O’Brien, o burocrata amoral, ganancioso e sedutor eternizado por Richard Burton (1925-1984) num de seus últimos trabalhos. O diretor-roteirista fala sobre o vilão do enredo no segundo ato, depois de apresentar Winston Smith, um funcionário do Ministério da Verdade que, obedecendo à novilíngua, reescreve informações de acordo com os interesses do Partido. Na Oceânia, o superestado que emerge de uma grande guerra, o idioma adotado inverte o sentido das palavras e, por conseguinte, do pensamento, matando no ovo qualquer chance de insurgência.

Não há muita perspectiva para Smith, até que seu mundinho é invadido por Julia, uma órfã de guerra vinte anos mais nova, que parece genuinamente apaixonada por ele. É bastante sabido o que vem a acontecer entre os dois; todavia, é notável o modo como Radford torce a narrativa a seu talante, numa série de truques que fascina quem assiste. A ingenuidade de Smith lembra Carlitos, o operário de Charlie Chaplin (1889-1977) em “Tempos Modernos” (1936), dirigido por ele, e, inconscientemente, John Hurt (1940-2017) vale-se de sua própria fisionomia na intenção de obter tal efeito. Talvez caiba um pequeno reproche ao que simboliza a Julia de Suzanna Hamilton, retrato de uma misoginia velada do autor, que, claro, deve ser tomada à luz do tempo em que viveu. Com Trump de volta ao jogo, respaldado por seu Grande Irmão transcontinental, teremos saudades do futuro. 

Filme: 1984
Diretor: Michael Radford
Ano: 1984
Gênero: Drama/Ficção Científica
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.