Sai esta semana da Netflix: a obra-prima com Tilda Swinton, considerada um dos melhores filmes dos últimos anos Divulgação / A24

Sai esta semana da Netflix: a obra-prima com Tilda Swinton, considerada um dos melhores filmes dos últimos anos

A memória é um território ambíguo. Ao mesmo tempo em que preserva momentos de felicidade, também carrega dores que resistem ao tempo, impossíveis de serem desfeitas ou modificadas. “O Souvenir — Parte 2”, dirigido por Joanna Hogg, é um filme que não apenas revisita lembranças, mas as transforma em matéria-prima para uma reflexão sobre perda, amadurecimento e a incessante necessidade humana de compreender o passado. A sequência do aclamado “O Souvenir” se afasta de uma estrutura narrativa convencional, preferindo uma abordagem introspectiva, quase como um diário visual em que cada cena, cada expressão e cada silêncio contribuem para a construção de um mosaico emocional.

No centro dessa jornada está Julie Hart, interpretada por Honor Swinton Byrne, uma aspirante a cineasta que tenta seguir em frente após a morte de seu namorado, Anthony (Tom Burke). Sua ausência não é apenas um vazio sentimental, mas um abismo que altera a percepção que ela tem de si mesma. O filme não se dedica a explicar detalhadamente o que ocorreu antes — ele exige que o espectador preencha as lacunas, como quem tenta reconstruir uma memória perdida. Para aqueles que não assistiram ao primeiro longa, o desafio é ainda maior, pois Joanna Hogg opta por não oferecer um caminho didático, mas sim fragmentos dispersos que, quando conectados, revelam a densidade emocional da protagonista.

Essa fragmentação é proposital. Julie não apenas tenta superar o luto, mas busca traduzir sua experiência em arte. A produção de seu primeiro filme se torna um reflexo de sua confusão interna — cada cena filmada, cada decisão criativa é influenciada pela dor e pelo desejo de dar sentido ao que aconteceu. Nesse processo, o cinema se mistura à vida, tornando-se não apenas um veículo de expressão, mas um espaço de autodescoberta. Há momentos em que o próprio ato de filmar parece ser um esforço para reviver Anthony, para mantê-lo presente de alguma forma, mesmo que de maneira abstrata e idealizada.

O longa, no entanto, não se limita ao melodrama. “O Souvenir — Parte 2” também é um estudo sobre a impermanência das relações e a forma como as memórias moldam nossas percepções do passado. Um dos diálogos mais marcantes do filme ocorre quando Julie confessa à terapeuta que não sabe se sente falta de Anthony ou da sensação de ter alguém que guiava suas escolhas e a desafiava intelectualmente. A sutileza dessa confissão revela a complexidade do luto: por vezes, a dor não está apenas na perda do outro, mas na ausência da dinâmica que definia a relação. Essa reflexão, ao invés de entregar respostas prontas, convida o espectador a mergulhar na subjetividade do amor e da saudade.

A atuação de Tilda Swinton, que interpreta Rosalind, mãe de Julie, adiciona outra camada de sofisticação ao filme. Mesmo com uma presença relativamente discreta, sua performance carrega um magnetismo inegável, tornando suas cenas memoráveis. Swinton, que é amiga de longa data de Hogg, empresta à personagem um misto de austeridade e ternura, funcionando como um contraponto à inquietação da filha. A interação entre mãe e filha transcende a tela — não apenas pelo fato de serem interpretadas por uma dupla real de mãe e filha, mas pela naturalidade com que compartilham gestos, olhares e silêncios carregados de significado.

A estética do filme reforça sua atmosfera sensorial. A cinematografia é minimalista, repleta de composições cuidadosas que remetem à pintura clássica, enquanto a trilha sonora, pontuada por momentos como “Moonlight Serenade”, da Glenn Miller Orchestra, evoca uma nostalgia quase palpável. Hogg constrói um universo visual onde cada objeto e cada ambiente parecem conter resquícios de lembranças que nunca se dissipam completamente. Em meio a flores, espaços amplos e luzes difusas, o filme cria um cenário que reflete a busca de Julie por uma clareza que talvez nunca venha de fato.

Apesar de sua estrutura pouco convencional, o longa não se perde em experimentalismos vazios. Há um equilíbrio entre introspecção e narrativa, permitindo que a história se desenrole de forma fluida, ainda que não linear. A cineasta utiliza um método que pode ser descrito como metalinguístico, transformando o próprio processo de criação cinematográfica de Julie em um espelho da jornada emocional que ela atravessa. Assim, a personagem não apenas aprende a fazer cinema, mas aprende a se compreender através dele.

“O Souvenir — Parte 2” é um filme que exige paciência e entrega. Não há respostas fáceis, nem resoluções convencionais. Seu mérito está na forma como traduz a experiência humana em imagens e sensações, respeitando os silêncios e os espaços vazios tanto quanto os diálogos e os eventos marcantes. Ao final, a trajetória de Julie não se resume a um fechamento emocional, mas a uma aceitação daquilo que não pode ser mudado. A vida segue, e com ela, as lembranças — algumas claras, outras nebulosas, mas todas permanentes à sua própria maneira.

Filme: O Souvenir — Parte 2
Diretor: Joanna Hogg
Ano: 2021
Gênero: Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★