A ideia de Deus é moldada pelas crenças humanas, assumindo formas tão diversas quanto as culturas e filosofias que o definem. Para alguns, Ele é um salvador benevolente; para outros, um observador distante ou mesmo uma figura implacável. Pode ser visto como um filósofo desapegado, um peregrino numa jornada solitária e brutal, ou ainda como uma força que permeia tudo, do inanimado ao vivo, do racional ao irracional. Enquanto Thomas Hobbes via a vida humana como uma luta miserável e violenta, Baruch Spinoza acreditava que o divino se manifesta em tudo que existe, unindo perfeição e fragilidade em uma só essência. Essa visão ambígua sugere um Criador que reúne o imaculado e o perecível, confrontando a humanidade com um dilema eterno: a escolha entre a destruição e a transformação, a ruína e a redenção.
Entretanto, a pureza infantil é impotente diante da brutalidade do mundo. Num cenário de pobreza extrema, devastado pela guerra e pela fome, três crianças foram testemunhas de um fenômeno extraordinário. Em “Fátima — A História de um Milagre”, Marco Pontecorvo retrata um evento místico ocorrido em 13 de maio de 1917, na pequena cidade de Fátima, em Portugal. Ali, Jacinta, Francisco e Lúcia tiveram uma visão da Virgem Maria que alteraria o curso de suas vidas e da fé católica. A aparição os exortou à oração pela paz, desencadeando curiosidade e ceticismo na população local. Décadas mais tarde, Lúcia, agora freira enclausurada, compartilha sua experiência com um estudioso cético, encenado por Harvey Keitel, criando um contraste entre fé e razão que permeia toda a narrativa.
O encontro entre Lúcia e o professor Nichols é o eixo central da história. Esse diálogo entre crença e racionalidade, passado e presente, conduz o espectador por uma jornada de reflexão sobre o papel da fé na superação do sofrimento humano. Ao mesmo tempo, a presença da Virgem Maria torna-se um símbolo poderoso, suscitando interpretações variadas: para uns, um milagre inegável; para outros, uma alucinação coletiva provocada pela miséria e pela opressão. Pontecorvo utiliza esse embate para criar uma narrativa que vai além do religioso, explorando as complexidades da experiência humana diante do inexplicável.
A direção de Marco Pontecorvo — filho do renomado cineasta Gillo Pontecorvo, responsável por clássicos como “A Batalha de Argel” e “Queimada!” — mostra um domínio impressionante sobre a delicada linha que separa a fé do ceticismo. Em “Fátima — A História de um Milagre”, ele costura eventos históricos com interpretações espirituais, criando um equilíbrio entre realidade e misticismo que desafia o espectador a questionar suas próprias crenças. A narrativa, conduzida com sensibilidade e precisão, explora as consequências sociais e emocionais das aparições, revelando como um evento sobrenatural pode moldar uma comunidade marcada pela pobreza e pela desesperança.
O elenco oferece interpretações poderosas que dão vida aos personagens históricos. Stephanie Gil, como Lúcia jovem, e Joana Ribeiro, como a aparição de Maria, trazem intensidade emocional às suas cenas, enquanto Harvey Keitel e Sônia Braga complementam a trama com atuações contidas, mas profundamente expressivas. A cinematografia explora a aridez do cenário português para refletir a dureza da vida na época, ao mesmo tempo em que utiliza a luz de forma simbólica para sugerir a presença divina. A trilha sonora, sutil e melancólica, reforça o tom introspectivo da narrativa, criando uma atmosfera envolvente e contemplativa.
Pontecorvo conduz o filme até a morte precoce de Francisco e Jacinta, vítimas da epidemia de gripe espanhola, e à vida monástica de Lúcia, que permaneceu no Carmelo de Santa Teresa de Coimbra até falecer em 2005, aos 98 anos. A narrativa não apenas reconta os eventos históricos, mas investiga o impacto emocional e espiritual das visões sobre os personagens e sua comunidade. A complexidade da fé, a dor da perda e a busca por sentido num mundo devastado emergem como temas universais, conectando o espectador contemporâneo aos dilemas dos personagens.
O processo de canonização de Maria Lúcia de Jesus e do Imaculado Coração teve início em 2008, reforçando seu papel como ícone de fé e perseverança. No centenário das aparições, em 13 de maio de 2017, Francisco e Jacinta foram canonizados pelo papa Francisco, eternizando sua história no imaginário coletivo da Igreja Católica. “Fátima — A História de um Milagre” vai além da simples dramatização de um evento religioso; é uma investigação profunda sobre a relação entre o sagrado e o mundano, o humano e o divino. O filme convida à reflexão sobre o poder da fé e sua capacidade de oferecer esperança em tempos de desespero.
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