Um feito excepcional: o filme da Netflix que mantém 100% de aprovação da crítica há 7 anos Divulgação / Netflix

Um feito excepcional: o filme da Netflix que mantém 100% de aprovação da crítica há 7 anos

Em “Calibre” (2018), o protagonista se vê à beira de uma transformação crucial. O peso das responsabilidades da paternidade o sufoca, ainda que ele não compreenda plenamente as alegrias que essa experiência poderia lhe proporcionar. Para escapar desse sentimento de aprisionamento, ele decide revisitar o passado, como quem revira uma velha mala em busca de algo que justifique o que ficou para trás.

No entanto, sua inquietação revela um deslocamento profundo em relação às escolhas feitas — ou à ausência de decisões conscientes. A fragilidade de suas convicções o torna vulnerável ao convite de Marcus, um amigo interpretado por Martin McCann, para uma caçada nas Terras Altas da Escócia. Sem experiência com armas e sem interesse genuíno pela caça, o protagonista aceita a proposta não por vontade própria, mas pela necessidade de agradar o amigo que não via há quinze anos. Esse desejo de satisfazer Marcus é um reflexo de sua indecisão e de uma lealdade que beira a submissão.

Ao chegarem ao vilarejo escolhido por Marcus, o filme revela um cenário carregado de presságios. A atmosfera tensa da pequena comunidade escocesa contrasta com a postura descontraída dos visitantes, que chegam como estranhos num mundo à parte. A recepção segue o roteiro clássico: homens urbanos com dinheiro e estilo atraem a atenção imediata das mulheres locais, enquanto despertam suspeitas entre os moradores. No entanto, o diretor Matt Palmer subverte as expectativas ao retratar Logan, o líder do povoado, como um homem perspicaz e razoável.

Interpretado por Tony Curran, Logan é um personagem complexo, movido pela necessidade de revitalizar sua comunidade em declínio. Embora despreze a caça esportiva, ele reluta em confrontar Marcus e o protagonista, ciente de que o turismo é uma das poucas esperanças de sobrevivência para o vilarejo. Enquanto Marcus aproveita ao máximo o último fim de semana de solteiro de seu amigo, o protagonista oscila entre o desconforto e a conformidade, deixando-se levar pela empolgação do companheiro.

A tensão cresce à medida que os eventos avançam. Em meio à paisagem isolada e melancólica das Terras Altas, a caçada começa sob um céu sombrio, prenunciando o desastre. Sob a insistência de Marcus, o protagonista dispara pela primeira vez, mas o que parecia um erro inocente logo se transforma em uma tragédia irremediável. O tiro acerta um alvo inesperado, levando-os a um confronto com o pai da vítima, que aparece no local num momento de dor e desespero.

Na tentativa desesperada de encobrir o acidente, Marcus toma uma decisão impiedosa: mata o homem que testemunhou o ocorrido. Esse gesto brutal sela o destino dos dois, transformando-os em cúmplices de um crime hediondo. Na tentativa de escapar das consequências, eles enterram os corpos, acreditando que o segredo permanecerá oculto sob a terra fria e úmida da Escócia. Contudo, o desaparecimento de um membro da comunidade desencadeia uma busca liderada por Logan, que, aos poucos, vai ligando as pistas deixadas pelos visitantes.

Ao longo do filme, a culpa corrói o protagonista, expondo sua vulnerabilidade emocional. Dividido entre a lealdade a Marcus e o peso de sua consciência, ele se torna prisioneiro de um dilema moral insolúvel. Sua relação com Marcus se revela profundamente desequilibrada, marcada pela manipulação e pela influência sufocante do amigo. Mesmo rejeitando o estilo de vida destrutivo de Marcus, ele se vê incapaz de se afastar, preso por uma dependência psicológica que o paralisa. O diretor Matt Palmer explora com habilidade essa dinâmica complexa, utilizando a paisagem inóspita e a fotografia sombria para intensificar o clima de opressão e desespero. A caçada, que deveria simbolizar liberdade e aventura, torna-se uma metáfora cruel para a perseguição implacável da verdade.

Conforme a trama se desenrola, as consequências de suas escolhas oscilam entre o desespero e a inevitabilidade. Logan descobre as covas rasas onde os corpos foram enterrados, e a vingança da comunidade se aproxima como um predador silencioso. Marcus, outrora confiante e frio, sucumbe ao pânico e à culpa, revelando a fragilidade oculta sob sua arrogância. O protagonista, por sua vez, enfrenta um dilema devastador: entregar-se à justiça e destruir sua vida familiar ou continuar fugindo das sombras de seus atos. A perseguição final é carregada de tensão, com cenas de fuga desesperada e tiros ecoando pela floresta, intensificando o desespero dos personagens.

O desfecho sombrio de “Calibre” ecoa reflexões profundas sobre moralidade e responsabilidade, lembrando o impacto filosófico de “O Cidadão Ilustre” (2016) e as questões existenciais abordadas em “O Mundo como Vontade e Representação” de Schopenhauer. Assim como na obra do pensador alemão, o filme explora a natureza destrutiva do desejo humano e as consequências trágicas das escolhas impensadas. O protagonista descobre que a tentativa de reviver o passado e de se reconectar com uma amizade perdida o conduz a um beco sem saída, onde não há redenção possível. As pessoas mudam, o tempo avança, e a nostalgia pode ser um engano perigoso. Em “Calibre”, essa lição se desenrola com uma intensidade implacável, deixando o espectador com um senso inquietante de fatalidade e arrependimento.

Filme: Calibre
Diretor: Matt Palmer
Ano: 2018
Gênero: Suspense
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★