Woody Allen retorna ao seu território familiar com “Homem Irracional”, um filme que mistura filosofia, suspense e humor ácido, evocando tanto suas obras clássicas quanto referências literárias e cinematográficas marcantes. Embora não alcance a grandiosidade de seus trabalhos mais icônicos, o longa se estabelece como um estudo instigante sobre moralidade, acaso e a fragilidade dos princípios éticos. Joaquin Phoenix encarna Abe Lucas, um professor de filosofia mergulhado em letargia existencial, cuja vida encontra um inesperado sentido ao conceber um crime como instrumento de justiça.
A trama se desenrola sob a ótica dos dilemas éticos que tanto fascinam Allen. O protagonista, à deriva em um mundo que já não lhe oferece estímulos, encontra na transgressão uma espécie de renascimento. Inspirando-se em “Crime e Castigo”, Allen constrói um arco narrativo que transforma Abe de um espectador apático da própria existência para um homem impulsionado por uma crença perversa na justiça pessoal. Joaquin Phoenix imprime camadas de desespero e euforia à performance, criando um personagem que transita entre a melancolia e a exaltação psicótica. Emma Stone, como Jill, a jovem estudante que se encanta pelo professor, representa não apenas o fascínio pela inteligência e mistério, mas também a tendência do cineasta de explorar a dinâmica entre figuras femininas idealistas e homens atormentados.
Visualmente, “Homem Irracional” aposta em contrastes. A fotografia luminosa e os cenários idílicos de Newport, Rhode Island, estabelecem um pano de fundo quase irônico para a obscuridade do enredo. A trilha sonora, permeada pelo jazz característico de Allen, amplifica essa ambiguidade, oscilando entre um tom melancólico e um humor soturno. No entanto, a insistente repetição de certas faixas pode diluir o impacto pretendido. A direção mantém a precisão característica do cineasta, garantindo atuações sólidas e uma condução narrativa que, embora cuidadosa, por vezes se rende a uma exposição excessiva dos temas filosóficos.
Algumas fragilidades impedem que o longa atinja o mesmo nível de suas obras mais sofisticadas. O roteiro, ainda que espirituoso, recorre frequentemente a diálogos explicativos que tornam a experiência por vezes didática. A narração em off, evocando o cinema noir, nem sempre adiciona profundidade, podendo comprometer a sutileza de certos momentos. Além disso, a transição entre o drama existencial e o suspense criminal carece da fluidez esperada, tornando o clímax menos impactante do que poderia ser.
As comparações com “Crimes e Pecados” e “Match Point” são inevitáveis. Ambos exploram com mais complexidade os dilemas morais e a imprevisibilidade do destino, apresentando personagens de ambiguidade mais densa. “Homem Irracional”, ainda que ressoe como um desdobramento dessas reflexões, não alcança a mesma profundidade. No entanto, o filme possui méritos próprios, especialmente no desenvolvimento de sua premissa intrigante e na performance envolvente de seu elenco.
Ainda que Allen esteja distante de seu auge criativo, “Homem Irracional” reafirma seu domínio sobre a linguagem cinematográfica e seu talento para costurar ironia, fatalismo e intelecto em uma narrativa que provoca e instiga. A interseção entre pensamento filosófico e narrativa de crime confere ao filme um caráter singular dentro de sua filmografia, garantindo-lhe um lugar de destaque entre as obras tardias do diretor. O resultado é um longa que, mesmo com seus deslizes, mantém a capacidade de gerar debates e permanecer na memória do espectador.
★★★★★★★★★★