Luc Besson construiu uma filmografia marcada por protagonistas femininas que transitam entre a vulnerabilidade e a letalidade, personagens moldadas tanto pela necessidade de sobrevivência quanto pela busca de identidade em um mundo que insiste em reduzi-las a meros instrumentos. De “Nikita — Criada Para Matar” a “Lucy”, suas narrativas frequentemente exploram mulheres que desafiam convenções, resistem a sistemas opressores e usam a violência como forma de emancipação. “Anna” é mais um capítulo dessa trajetória, mas, em vez de renovar ou expandir essa fórmula, o filme recicla ideias já desgastadas, resultando em um thriller de espionagem visualmente sofisticado, mas narrativamente previsível.
A protagonista, Anna Poliatova, é apresentada como uma mulher sem perspectivas na Moscou dos anos 80, presa em um relacionamento abusivo e à mercê de uma sociedade que lhe oferece poucas opções. Seu destino muda quando Alex Tchenkov, um agente da KGB, a recruta para um programa de treinamento que a transformará em uma assassina letal. Sob o comando da rígida Olga, Anna se torna uma peça valiosa dentro da estrutura soviética, enquanto mantém a fachada de modelo internacional em Paris. O equilíbrio entre a brutalidade das missões e o glamour das passarelas funciona como pano de fundo para a jornada de Anna em busca de liberdade. Quando a CIA entra no jogo e lhe propõe um acordo — eliminar o chefe da KGB em troca de uma nova identidade e liberdade definitiva —, a trama se desenrola em uma sucessão de traições, segredos e reviravoltas previsíveis.
Besson constrói a narrativa de forma fragmentada, alternando entre flashbacks e saltos temporais que revelam gradualmente as peças do quebra-cabeça. Essa estrutura, que poderia ser um recurso eficaz para instigar o espectador, acaba evidenciando a falta de originalidade da trama. Cada revelação parece menos uma surpresa e mais uma repetição de tropos já desgastados, como se o diretor confiasse exclusivamente no apelo visual e na estética estilizada para manter o interesse.
Se há um elemento que eleva o filme, é a performance de Helen Mirren como Olga. A personagem combina cinismo e pragmatismo de maneira magnética, equilibrando o papel de mentora e antagonista com uma presença que domina todas as cenas em que aparece. Mirren se diverte com os diálogos afiados e a postura intimidadora, tornando Olga um dos pontos altos da história. Sasha Luss, por outro lado, tem dificuldade em sustentar o peso da protagonista. Embora sua presença física seja inegável, sua interpretação carece de nuances emocionais, tornando difícil enxergar em Anna a complexidade que o roteiro sugere. A comparação com protagonistas de filmes similares é inevitável — Charlize Theron em “Atômica” e Jennifer Lawrence em “Operação Red Sparrow” conseguiram conferir profundidade a personagens que, em mãos menos talentosas, poderiam ter se tornado arquétipos vazios.
Visualmente, “Anna” mantém o padrão elevado das produções de Besson. A cinematografia de Thierry Arbogast explora a dualidade da personagem com um jogo de luz e sombras que enfatiza tanto sua vulnerabilidade quanto sua frieza letal. A trilha sonora de Éric Serra reforça o tom de mistério e tensão, criando uma ambientação envolvente. No entanto, as sequências de ação, que deveriam ser o coração do filme, carecem de impacto. As lutas são bem coreografadas, mas sem a urgência e intensidade que tornariam cada confronto memorável. O combate no restaurante, por exemplo, tem coreografia elaborada, mas a execução parece calculada demais, sem a espontaneidade visceral que poderia torná-lo icônico.
O filme também tropeça na forma como representa sua protagonista. Anna é constantemente fetichizada, com cenas que exploram mais sua sensualidade do que sua capacidade como agente. A inclusão de uma relação homoerótica gratuita com outra modelo soa mais como um artifício estilístico do que como um elemento genuíno da narrativa. Em um contexto em que o próprio Besson enfrentou acusações de má conduta sexual — todas negadas pelo diretor —, certas escolhas estilísticas adquirem um tom desconfortavelmente anacrônico.
Se “Anna” tivesse sido lançado nos anos 1990, talvez pudesse ter sido recebido como um thriller inovador. Mas, em um mercado já saturado de histórias de assassinas impiedosas, o filme falha em justificar sua relevância. A sensação que fica é a de um diretor que já dominou esse gênero, mas que agora parece incapaz de reinventá-lo. Enquanto “Nikita — Criada Para Matar” e “O Profissional” continuam a ser referências no cinema de ação, “Anna” se perde como uma repetição desgastada de uma fórmula que já teve seu auge.
Ainda assim, há entretenimento a ser encontrado aqui. O filme é tecnicamente bem executado, possui momentos que funcionam e conta com uma atuação memorável de Helen Mirren. Mas falta a “Anna” algo essencial: uma identidade própria. Sem isso, ele não passa de um reflexo de glórias passadas, um filme que tenta reviver o brilho de uma época em que Luc Besson ainda surpreendia.
★★★★★★★★★★