Há histórias que o tempo enterra sob camadas de silêncio e desinteresse. Algumas delas, no entanto, são tão essenciais que, quando finalmente emergem, redefinem não apenas a memória coletiva, mas também a percepção sobre quem realmente moldou os eventos históricos. É nesse território que se insere “Batalhão 6888”, o mais recente filme de Tyler Perry, que abandona seu tom cômico habitual para narrar uma das missões mais subestimadas da Segunda Guerra Mundial.
Baseado no artigo “Fighting a Two-Front War”, de Kevin M. Hymel, publicado na revista History, o filme resgata a trajetória do 6888º Batalhão Central de Diretório Postal, um grupo de 855 mulheres negras do Exército dos EUA enviado para a Europa em 1945 com uma tarefa vista como banal, mas que se provou decisiva: destravar um colapso de correspondências que deixava milhões de soldados sem notícias de suas famílias e vice-versa. Mais do que uma missão logística, era uma batalha contra o apagamento, contra uma estrutura militar que duvidava da capacidade dessas mulheres e que, na verdade, não queria que elas tivessem sucesso.
Perry adota um tom épico ao construir essa história, mas não sem algumas concessões ao melodrama. O filme equilibra momentos de tensão genuína com inserções emotivas que, embora nem sempre sutis, resgatam o peso humano de uma missão frequentemente reduzida a estatísticas. O elenco liderado por Kerry Washington, no papel da intransigente Major Charity Adams, transmite essa dualidade com intensidade. Adams não apenas lidera, mas carrega nos ombros o peso de uma responsabilidade dupla: cumprir uma tarefa considerada impossível e provar que seu batalhão tinha tanto valor quanto qualquer outra tropa do Exército Americano.
A jornada da protagonista é entrelaçada com histórias individuais de mulheres que, cada uma a seu modo, refletem os desafios enfrentados por soldados que eram constantemente lembradas de sua posição marginal na estrutura militar. Lena Derriecott (Ebony Obsidian) é o coração emocional do filme. Marcada pela perda de seu namorado, um jovem piloto judeu abatido na guerra, Lena simboliza a luta de tantas pessoas que, em meio ao caos do conflito, aguardavam por respostas que nunca chegavam. Seu luto a leva ao Exército, mas o que ela encontra lá é um novo tipo de batalha, travada contra as barreiras raciais e de gênero que limitavam a ascensão de mulheres negras na hierarquia militar.
O 6888º é formado por uma variedade de personalidades que se tornam o microcosmo dessa luta. Johnnie Mae (Shanice Shantay), uma divorciada do sul irreverente e afiada, traz um senso de resistência que destoa da disciplina militar, mas que se mostra essencial para manter o ânimo do grupo. Bernice (Kylie Jefferson), a sofisticada nova-iorquina com talento para a dança, e Dolores (Sarah Jeffery), uma recruta de ascendência mexicana, ajudam a compor um retrato diverso e multifacetado dessas mulheres.
A hostilidade não demora a se manifestar. Desde o treinamento nos EUA até a chegada à Glasgow, Escócia, o batalhão enfrenta a indiferença e o desprezo de uma hierarquia que aposta no seu fracasso. O General Halt (Dean Norris, de “Breaking Bad”), o antagonista da trama, não esconde seu racismo e faz de tudo para sabotar a operação, criando obstáculos burocráticos e minando a credibilidade do batalhão. Seu confronto com Major Adams é um dos momentos mais marcantes do filme, destacando não apenas a força de sua liderança, mas também a ironia da história: hoje, há um forte militar que leva o nome de Adams; o general que tentou detê-la, por outro lado, caiu no esquecimento.
Perry, conhecido por sua abordagem exagerada em muitos de seus filmes, surpreende ao adotar uma condução mais sóbria e direta. Ainda há traços de sentimentalismo, como a presença simbólica do namorado falecido de Lena, que surge para lhe dar força nos momentos de dúvida. Mas, no geral, o filme se mantém focado em construir a grandeza da história sem recorrer a artifícios narrativos desnecessários.
A cinematografia acerta especialmente na sequência da primeira marcha do batalhão pelas ruas bombardeadas de Glasgow, um momento visualmente impactante que traduz a grandiosidade da missão e a resistência dessas mulheres. Diferente de outros filmes de guerra que se apoiam em sequências de combate, “Batalhão 6888” encontra sua força no cotidiano, na exaustiva e meticulosa tarefa de organizar pilhas intermináveis de correspondências, na engenharia logística desenvolvida pelo batalhão e na resiliência silenciosa das suas protagonistas.
O roteiro não evita mostrar que, além de lidar com um sistema que as desprezava, essas mulheres ainda eram esperadas para entreter os soldados negros nos fins de semana, uma exigência que expunha as desigualdades dentro da própria estrutura militar. Debbie Allen coreografa um número de jitterbug que, embora funcione como um alívio narrativo, também ressalta a constante necessidade de provar valor em um ambiente que as via apenas como suporte e não como protagonistas da história.
No fim, o filme compartilha o espírito de produções como “Estrelas Além do Tempo”, trazendo à tona um capítulo negligenciado da história dos EUA. Mas há algo que diferencia “Batalhão 6888”: não se trata apenas de uma narrativa de superação individual, mas de uma reescrita coletiva da memória histórica.
Em 2015, Michelle Obama homenageou as sobreviventes do 6888º. Em 2022, o presidente Joe Biden concedeu ao batalhão a Medalha de Ouro do Congresso, um reconhecimento que demorou quase 80 anos para chegar. O filme de Perry não reinventa o gênero, mas cumpre seu papel essencial: garantir que a história dessas mulheres jamais seja esquecida novamente.
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