Nenhum faroeste, por melhor que seja, vai chegar aos pés dessa obra-prima de Sergio Leone, na Netflix Divulgação / Paramount Pictures

Nenhum faroeste, por melhor que seja, vai chegar aos pés dessa obra-prima de Sergio Leone, na Netflix

Poucos filmes conseguem transcender sua própria estrutura narrativa e se tornar experiências sensoriais que desafiam as convenções do cinema. “Era uma Vez no Oeste”, de Sergio Leone, não apenas redefine o western, mas o eleva a um estado de contemplação quase mitológica. Cada enquadramento, cada pausa deliberada e cada acorde da trilha de Ennio Morricone compõem um réquiem para um tempo que se esvai, um épico que desconstrói arquétipos e os reconstrói sob uma perspectiva sombria e melancólica.

O filme não se contenta em seguir os moldes tradicionais do gênero. Se os faroestes clássicos de Hollywood eram guiados por narrativas maniqueístas, em que heróis e vilões ocupavam posições rigidamente definidas, Leone se recusa a operar sob essa lógica simplista. Aqui, os personagens não são apresentados por meio de exposições verbais expositivas, mas sim por silêncios prolongados, olhares carregados de significado e gestos calculados. Charles Bronson encarna um pistoleiro envolto em mistério, cuja presença quase espectral ecoa um passado de acertos de contas inacabados. Já Henry Fonda subverte a própria imagem de ícone da retidão moral para dar vida a um antagonista de frieza implacável, cuja crueldade se revela nos mínimos detalhes.

A cinematografia de Leone transforma o ambiente árido do Oeste em um personagem vivo. Planos abertos acentuam a vastidão impiedosa da paisagem, enquanto closes extremos capturam a intensidade psicológica dos duelos que se desenrolam sem palavras, mas com tensão sufocante. A cena de abertura, que se estende por longos minutos sem uma única linha de diálogo, exemplifica essa abordagem. Três homens aguardam a chegada de um trem em uma estação desolada, e o que poderia ser um momento trivial se converte em uma coreografia meticulosa de expectativa e suspense, onde cada som ambiente — o ranger da madeira, o zumbido de um inseto, o gotejar da água — se torna um elemento narrativo.

A trilha sonora de Ennio Morricone é uma extensão da linguagem visual de Leone. Em vez de meramente acompanhar as cenas, a música antecipa emoções, estabelece ritmos e se torna, ela mesma, uma personagem dentro da história. O tema associado ao protagonista de Bronson, um lamento marcado por notas dilacerantes de gaita, evoca um destino inescapável e confere à narrativa uma atmosfera de tragédia inevitável. Morricone, ao integrar a música de forma tão orgânica à trama, eleva a experiência cinematográfica a um nível quase operístico.

Mas “Era uma Vez no Oeste” não é apenas uma obra de estética primorosa. Sua essência está na reflexão sobre o crepúsculo de uma era. A chegada da ferrovia, símbolo da civilização em expansão, transforma o Velho Oeste em um resquício de um tempo que se dissolve. Os personagens são relíquias de um mundo que não tem mais espaço para eles. O duelo final não é apenas um confronto entre dois homens, mas a colisão entre um passado que se recusa a desaparecer e um futuro que avança sem piedade.

Ao desafiar convenções e reconfigurar o western sob um prisma mais profundo e contemplativo, Leone construiu um filme que resiste ao tempo, convidando o espectador a revisitá-lo sempre em busca de novas camadas de significado. “Era uma Vez no Oeste” não é apenas um dos ápices do gênero, mas uma das mais significativas reflexões sobre a passagem do tempo e o destino inexorável das lendas. Seu impacto não se esgota na contemplação estética; ele reverbera como uma elegia para um mundo que já não existe, mas cujo eco persiste na memória do cinema.

Filme: Era Uma Vez no Oeste
Diretor: Sergio Leone
Ano: 1968
Gênero: Faroeste
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★