Não é novidade que imagens e figuras escapem de suas molduras para interferir no mundo real. Em “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, drama histórico dirigido por Céline Sciamma, a protagonista deseja exatamente o oposto do célebre personagem de Oscar Wilde em “O Retrato de Dorian Gray”: anseia se desprender do universo idealizado da arte e se reconhecer na imperfeição da existência, onde cada escolha e cada perda deixam marcas, tornando o simples ato de viver uma experiência singular e irreversível.
O roteiro de Sciamma se constrói a partir da relação entre Marianne e Héloïse, ambas profundamente conectadas à pintura que dá título ao longa. Inicialmente, a narrativa parece equilibrar suas trajetórias, mas, aos poucos, a diretora insinua uma inclinação sutil para uma delas, sem, no entanto, dissociar suas angústias e desejos. Através desse jogo de sombras e luzes, o filme se debruça sobre as imposições sociais do século XVIII, quando mulheres viam seus futuros reduzidos a um casamento por conveniência ou à renúncia de suas aspirações, pequenas imposições que, em sua somatória, configuravam destinos inteiros.
Marianne, interpretada por Noémie Merlant, chega a uma propriedade isolada na Bretanha, encarregada de pintar um retrato de Héloïse. O pedido parte da condessa, mãe da jovem, cujo último recurso para preservar o status da família é garantir o casamento da filha com um nobre milanês. O noivo exige ver a imagem antes da união, e é a partir dessa circunstância que Sciamma ergue o drama. Héloïse, recém-saída de um convento, carrega o peso da morte misteriosa da irmã, que, segundo a criada Sophie, teria se lançado de um penhasco de propósito, sugerindo um destino inescapável para mulheres como elas.
O núcleo feminino se fecha em torno de quatro personagens — Marianne, Héloïse, a condessa e Sophie —, cada qual equilibrando-se entre sonhos privados e a dura realidade imposta pela época. A diretora tece esse tecido de delicadeza extrema sem perder o pulso firme, preparando o público para o inevitável laço que se forma entre Marianne e Héloïse, que, a princípio, acredita que a visitante seja apenas sua dama de companhia. O convívio diário aproxima as duas, permitindo à pintora absorver e transpor para a tela cada detalhe da jovem, recriando sua imagem com a precisão de quem observa além da superfície.
Com um requinte formal que nunca descamba para a frieza, Sciamma estrutura um romance em que o desejo transparece em gestos mínimos, como a atenção às mãos e ao contorno das orelhas de Héloïse, elementos que evocam tanto a sensualidade latente quanto a natureza artística do olhar de Marianne. No início, é Noémie Merlant quem conduz o filme, mas, aos poucos, Adèle Haenel ocupa o centro da cena, irradiando emoção, algo que se intensifica no instante em que Marianne admite à amada o real motivo de sua estadia.
A diretora amplia a trama com sutileza ao desenvolver as histórias paralelas da condessa e de Sophie, interpretadas com notável naturalidade por Valeria Golino e Luàna Bajrami, respectivamente. Um dos momentos mais marcantes surge quando Sophie revela estar grávida e as três mulheres se unem para preparar um chá abortivo, numa cena que trata um tema delicado sem recorrer a discursos panfletários. O filme jamais cede ao melodrama ou ao didatismo excessivo, sustentando-se na força das imagens e no peso das escolhas silenciosas.
Não há surpresas no destino final de Marianne e Héloïse, pois o contexto histórico não lhes oferece outra alternativa senão a separação. O que importa é como Sciamma conduz esse desenlace, evitando fatalismos e sugerindo que, mesmo quando o tempo e a sociedade impõem limites, a memória do que foi vivido permanece intacta. Porque, no fim, tudo se dissolve — exceto aquilo que, um dia, ardeu.
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