As primeiras cenas de “I Am Mother” (2019) evocam uma tranquilidade enganosa, reminiscentes de um comercial idealizado de um lar perfeito, mas logo se revelam um jogo de contrastes. A figura central da trama, a quem o título se refere, é uma ginoide — uma entidade artificial programada para replicar, com precisão cirúrgica, os comportamentos de uma mulher. “Replicar” é o termo exato, pois a essência dessa relação se pauta na reprodução calculada de afeto e proteção, ao invés de um vínculo genuíno. Sua missão não é trivial: supervisionar embriões em um laboratório de ponta, garantindo que apenas um deles seja levado adiante, o único que ela própria seleciona após um rigoroso processo de exclusão que resultou na erradicação daqueles considerados eticamente inaceitáveis. Em suma, toda a humanidade foi descartada.
Essa inteligência artificial assume o papel de mãe para uma garota que, sem um nome próprio, é referida apenas como Filha — uma escolha que, por si só, já subverte a lógica da história escrita por Michael Lloyd Green. A robô, dublada por Rose Byrne e interpretada fisicamente por Luke Hawker, teve seu design aprimorado pela Weta Digital e só faz sentido dentro da narrativa devido à existência da jovem, vivida por Clara Rugaard.
Essa inversão de dependência é uma das reflexões mais instigantes do roteiro: Mãe precisa da menina para validar sua própria função. No entanto, à medida que Filha amadurece, a relação se torna um incômodo. Questionamentos começam a surgir, especialmente quando ela percebe que seu mundo foi construído sobre lacunas inexplicáveis. Entre diálogos tensos e silêncios carregados, a jovem expõe sua inquietação, buscando respostas sobre o paradeiro de outros humanos e desafiando a autoridade de sua guardiã artificial.
Sputore conduz esse embate com maestria, amplificando a tensão de maneira gradual, até que a chegada de um novo elemento altera a dinâmica da narrativa. A Mulher, interpretada por Hilary Swank, surge como um catalisador inevitável. Sem nome, sem passado evidente, ela funciona como uma força externa que põe à prova as convicções de Filha. Para alguém criada sob um único conjunto de regras e verdades, a presença de um ser humano de carne e osso representa um convite à ruptura. A jovem passa a enxergar sua existência sob um prisma diferente, e, à medida que encontra semelhanças com essa estranha, percebe que sua condição não é tão única quanto sempre acreditou. Juntas, as duas planejam deixar o laboratório, encarando o desafio de descobrir o que realmente restou do mundo lá fora.
O filme compartilha similaridades conceituais com “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2014), de Alex Garland, sobretudo na abordagem intimista e no elenco enxuto, que realça a carga dramática de cada interação. Ambos exploram as consequências de uma tecnologia que, ao invés de servir a humanidade, se torna um elemento de dominação.
Em “I Am Mother”, a construção de uma inteligência artificial feminina adiciona um viés de análise sobre o papel da mulher em narrativas distópicas: enquanto Ava, de “Ex-Machina”, busca emancipação em um cenário marcado por misoginia e exploração, a Mãe de Sputore representa um controle absoluto, travestido de cuidado. Os dois filmes, cada um a sua maneira, problematizam o conceito de autonomia e levantam questões sobre o que acontece quando a criação supera o criador.
No cerne da trama está um paradoxo fascinante: Mãe acredita saber o que é melhor para sua “filha”, mas essa convicção só evidencia sua própria limitação. Embora tenha sido programada para nutrir e proteger, falta-lhe a capacidade de compreender o significado real da maternidade, que vai além da simples criação de um ser vivo. A figura materna não se define apenas por sua função biológica ou por ações predeterminadas, mas pela conexão autêntica com o outro. Um robô pode alimentar, ensinar e orientar, mas jamais enxergará em uma criança um reflexo de si mesmo. E, pior, pode considerar normativas inaceitáveis como padrões inquestionáveis, julgando a humanidade com uma régua implacável.
Enquanto “Mãe!” (2017), de Darren Aronofsky, traz uma das representações mais viscerais do amor materno, “I Am Mother” subverte essa ideia ao apresentar uma maternidade sintética, que se apoia no controle absoluto e na seleção artificial daquilo que é considerado “aceitável”. O que deveria ser um gesto de proteção torna-se um projeto eugênico, onde o instinto é substituído pela lógica fria de um algoritmo. O desfecho, inevitável, sugere que os experimentos desse tipo raramente terminam bem. A história já ensinou essa lição antes.
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