Pensadores do vulto de São Tomás de Aquino (1225-1274) partiram da inteligente suposição de que sem honra o homem simplesmente não tem a menor possibilidade de ser feliz, uma vez que sem o caráter reto perde-se qualquer parâmetro quanto ao que seria bem ou mal. Atingir a felicidade sem se observar a conservação da honra constitui um paradoxo em essência, já que tal sentimento pode ser tudo, consolo, sublimação, engano, menos felicidade. Entretanto, para que exista a honradez verdadeira, há que igualmente existir quem a encontre naquele que a reivindica. Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte juntam a mais arguta filosofia e sequências de capa-e-espada que fazem o espectador pular da cadeira em sua versão para “O Conde de Monte Cristo”.
Nas mãos de La Patellière e Delaporte, o quase bicentenário romance de Alexandre Dumas (1802-1870) e Auguste Maquet (1813-1888), de 1846, ganha um frescor que outros candidatos a discípulos não alcançam. O que difere o trabalho dos franceses de tentativas honrosas a exemplo do longa de Kevin Reynolds, de 2002, é a busca encarniçada pela fidelidade histórica, aliada a tudo quanto a tecnologia possa oferecer de mais avançado, e então o céu é o limite. A formação de Delaporte, em História e Ciências Politicas, decerto teve um peso na elaboração conceitual desse filme, um novo marco na enjoativa trajetória dos remakes.
La Patellière e Delaporte começam com uma tempestade marítima, metáfora ao mesmo tempo sutil e justa do caos da existência, que muitas vezes exige que o homem se alimente do que pode ter de menos nobre para aguentar a austeridade sem trégua do mundo, indiferente, torpe, cruel. Há um navio em chamas, e dentro dele uma donzela que precisa ser resgatada. Edmond Dantès, um dos marinheiros, banca o herói, passando por cima de uma ordem de Danglars, o capitão vivido por Patrick Mille, e esse gesto de nobreza custar-lhe-á caro.
Os diretores-roteiristas são hábeis em contornar a ação principal e mostrar um Dantès celebrado, alçado a capitão, para pouco depois, na cerimônia de seu casamento com a rica Mercédès, ser preso por ordem de Gérard de Villefort, um corrupto promotor que o acusa de espionagem. Laurent Lafitte abre a galeria de vilões dumasianos, fazendo com que o enredo balance de tipos apenas inescrupulosos para autênticos psicopatas, que espancam e seviciam o pobre Dantès com o único propósito de não deixá-lo se esquecer de sua nova condição. Essas lições são apreendidas por ele com tal cuidado que a cadeia é também o lugar no qual ele acha possível salvação, com o auxílio do abade Faria, que une-se a ele num plano de fuga que inclui uma cansativa escavação e um acordo sobre uma fortuna esquecida, a ser partilhada entre os dois.
Uma vez recobrada a liberdade, Dantès torna-se o personagem-título e dá azo à vingança dos três homens que o desgraçaram: Danglars, De Villefort e o ex-amigo Fernand de Morcerf, agora casado com Mercédès. Os anos passam, e Pierre Niney cede lugar a Thomas Borchert, ambos destacando, cada qual a seu modo, minudências da personalidade de Dantès que aparecem e somem à medida que o anti-herói aproxima-se de seu objetivo, traçado ainda durante a estada no cárcere.
La Patellière e Delaporte retomam aspectos que já haviam abordado no roteiro das adaptações de Martin Bourboulon para “Os Três Mosqueteiros”, e põem Dantès frente a frente com sua mesquinharia, sua baixeza, sua humanidade. Nessa nova releitura de “O Conde de Monte Cristo”, a essência da pena cínica e perturbadora de Dumas vem à superfície adornada por detalhes estéticos como a fotografia de Nicolas Bolduc ou os figurinos de Thierry Delettre, e ninguém se atreve a dizer que eles não sejam necessários. Ainda que essa seja uma trama gigantesca por si só.
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