A série de suspense que lidera o top 1 mundial da Netflix e já foi vista por 5 milhões de pessoas no primeiro dia! Você já assistiu? Divulgação / Netflix

A série de suspense que lidera o top 1 mundial da Netflix e já foi vista por 5 milhões de pessoas no primeiro dia! Você já assistiu?

À medida que inventa demandas e cria novas necessidades, o homem precisou também elaborar novos jeitos de resolver os problemas a que ele mesmo dava azo. Foram surgindo objetos, mecanismos, programas, dispositivos antes completamente alheios ao dia a dia do cidadão comum. Esses aparatos, capazes de expandir a realidade, possibilitar ao indivíduo experiências que sequer imaginava, numa espécie de prolongamento de sua consciência, adquiriram o status de meros eletrodomésticos, tão banais se tornaram. 

A partir de então, tudo o que a velha musa cantava tinha de cessar, para que novos anseios fossem alimentados, novas carências supridas, e nos entulhássemos de outras parafernálias. A inteligência artificial é mesmo mais diabólica que santa, e pode remontar a um tempo em que computadores como os vemos hoje não passavam de uma delirante quimera — ao menos é nisso que Benjamin Gutsche nos quer fazer acreditar em “Cassandra”. Em seis episódios, Gutsche conta a desventura de uma família que vai morar numa casa aparentemente comum, mas que guarda uma assistente virtual inativa há meio século e que torna à vida com o propósito de acertar as contas com a humanidade. 

Depois de uma morte em família, David Prill leva a esposa, Samira, e os filhos, Flynn e Juno, para o interior da Alemanha. Espera por eles um casarão abandonado que, conforme se vai assistir, foi alvo de um experimento pioneiro no começo dos anos 1970. Considerando-se que a internet, fruto de um projeto militar que visava ao compartilhamento seguro de dados em tempo real saiu no papel em 1969, sendo aprimorada e testada à exaustão até ficar no ponto para invadir o cotidiano de 99% dos habitantes do globo, independentemente da classe social a que pertençam, da cor de sua pele e da fé que professam, Cassandra, a doméstica ideal, é um verdadeiro fenômeno do homo sapiens sapiens. 

O texto do diretor brinca com signos que qualquer reconhece de imediato, a exemplo da constituição física, o HD de Cassandra, em quase tudo semelhante a Rosie, a empregada dos Jetsons, retratados na animação homônima desenvolvida por William Hanna (1910-2001) e Joseph Barbera (1911-2006) e levada ao ar pela American Broadcasting Company entre 1962 e 1963. O nome da ginoide decerto foi escolhido a partir de uma menção oblíqua a Cassandra, a profetisa dos vaticínios absurdos, que causavam escárnio e revolta na Grécia Antiga. Mas a Cassandra de Gutsche é mesmo visionária, e muito esperta.

Já no capítulo de abertura, Gutsche deixa clara sua urgência quanto a contornar o chavão e legar à posteridade uma obra capaz de registrar com fidedignidade o espírito do nosso estranho tempo. Antes que as intenções de Cassandra fiquem óbvias, ela consegue disfarçar o plano de usurpar o comando da casa e o ter para si o afeto de seus moradores, elegendo um deles como o inimigo a ser eliminado. A proximidade com Juno, a caçula de David e Samira encarnada por Mary Tölle, fornece pistas para alguns pontos que o diretor só esclarece na iminência do desfecho, momento em que um flashback pensado com riqueza de detalhes apresenta uma outra versão da robô. 

O diretor de fotografia Moritz Kaethner recorre ao sépia e ao chuvisco para voltar a 1965, quando Cassandra enfrenta o trauma que a aproxima dos humanos (e, em especial, dos Prill), idas e vindas dramatúrgicas que afastam o trabalho de Gutsche de comparações com “Black Mirror” (2011-2023), de Charlie Brooker, e que Lavinia Wilson, a cereja mais saborosa desse bolo, maneja a seu talante. Cada expressão de Cassandra de fato se parece com as respostas que um cérebro eletrônico teria, a ponto de assustar o espectador mais desatento. Wilson, uma jovem veterana da indústria cinematográfica alemã que conta mais de sessenta filmes no currículo em 32 anos de carreira, eleva “Cassandra” à categoria de uma obra de arte tão exótica quanto necessária, mormente numa era marcada por incerteza e loucura de homens que abdicam de sua natureza humana com todo o empenho.


Série: Cassandra
Direção: Benjamin Gutsche
Ano: 2025
Gêneros: Thriller/Suspense
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.