Esse filme traumatizou quem viu no cinema. Agora é a sua vez na Netflix Divulgação / Neon

Esse filme traumatizou quem viu no cinema. Agora é a sua vez na Netflix

Há cineastas que testam limites, alguns que desafiam convenções e outros que desmantelam qualquer ilusão de segurança moral ou narrativa. Brandon Cronenberg pertence a essa última estirpe. Em “Piscina Infinita”, ele não apenas intensifica sua inclinação por narrativas perturbadoras, mas leva a experiência a um patamar ainda mais desconfortável, explorando a degradação da elite, a erosão da identidade e o vazio existencial. O cerne da questão não se limita à impunidade diante do crime, mas à corrosão irreversível da individualidade quando consequências deixam de existir. Se a morte pode ser delegada, o que resta da vida? E, mais ainda, o que nos define quando a responsabilidade desaparece por completo?

O cenário dessa experiência é La Tolqa, um destino turístico tão sedutor quanto opressivo, onde a lei impõe punições brutais: um estrangeiro que comete assassinato deve ser executado pelo filho da vítima. Mas há uma brecha. Quem dispõe de recursos pode pagar por um procedimento que gera um clone idêntico para morrer em seu lugar. James Foster (Alexander Skarsgård), um escritor cuja ambição criativa já se dissipou, depara-se com essa alternativa após um acidente fatal. Seu terror inicial ao testemunhar sua própria morte logo se converte em fascínio, depois em uma liberdade perigosa. A ideia de um substituto que absorve todas as punições transforma-se em uma experiência viciante. O filme não apenas propõe um conceito instigante, mas desmonta qualquer vestígio de moralidade: quando a culpa pode ser terceirizada, o que impede alguém de cruzar qualquer limite?

A resposta se insinua na figura de Gabi (Mia Goth), uma mulher cuja sedução se confunde com perversidade, conduzindo James por um caminho sem volta. O longa não se limita a uma crítica à impunidade dos abastados; ele a encarna no comportamento de seus personagens, que se despem de qualquer resquício de ética ou identidade. Acompanhado por um grupo de hedonistas igualmente corrompidos, James se entrega a um ciclo de prazeres extremos e violência desmedida, dissolvendo-se em rituais de euforia e aniquilação. O uso de máscaras grotescas, inspiradas na cultura local, não serve apenas para ocultação, mas para reforçar a dissolução da individualidade. Cronenberg questiona se a identidade é algo fixo ou apenas um artifício imposto por regras sociais. Quando essas regras são eliminadas, o que ainda nos define?

Se “Possessor” já tangenciava a desintegração do eu, “Piscina Infinita” radicaliza essa inquietação. A fotografia de Karim Hussain intensifica essa fragmentação, criando uma atmosfera sensorialmente esmagadora: luzes estroboscópicas, ângulos distorcidos e uma trilha sonora pulsante embaralham a percepção do espectador, arrastando-o para um delírio compartilhado com James. Cronenberg manipula tempo e espaço para corroer qualquer sensação de linearidade, tornando a experiência imersiva e desconfortável. Alexander Skarsgård transita entre a vulnerabilidade de um homem esgotado e a brutalidade de alguém que se entrega ao abismo. Mia Goth, por sua vez, reafirma sua presença magnética no cinema contemporâneo, encarnando uma Gabi que é ao mesmo tempo musa e devoradora, guiando James a um inferno sem retorno.

Mas o filme não se esgota em seu impacto visual ou transgressão estilística. No cerne da narrativa, há um dilema filosófico inquietante: se um clone pode morrer em seu lugar, há de fato distinção entre original e cópia? O sobrevivente continua sendo a mesma pessoa que existia antes? E quando qualquer noção de limite se dissolve, ainda é possível sentir algo genuíno? Diferente de cineastas que utilizam a provocação como artifício, Cronenberg não se contenta em sugerir respostas fáceis. Seu cinema é um campo de experimentação, um convite ao desconforto, uma experiência que exige comprometimento total do espectador.

Há quem critique “Piscina Infinita” por sua estrutura fragmentada e pelo peso dado à extravagância transgressora em detrimento de uma narrativa convencional. De fato, o filme se recusa a oferecer segurança. Ele não guia o espectador, não alivia tensões e tampouco entrega respostas prontas. Essa recusa em se enquadrar nas convenções narrativas, no entanto, é justamente o que o torna tão hipnótico. Cronenberg não propõe um espelho que reflita a realidade, mas um abismo que desafia quem ousa encará-lo.

Se David Cronenberg revolucionou o horror corporal ao dissecar a mutação da carne, Brandon leva essa inquietação a um nível ainda mais abstrato: ele não observa apenas a metamorfose física, mas o colapso da identidade. Seu cinema não se limita a transformar corpos, mas a pulverizar consciências. “Piscina Infinita” não é um filme para conforto. Ele não busca facilitar interpretações. Mas, para aqueles dispostos a mergulhar em seu universo, oferece algo raro: uma experiência que não apenas instiga, mas devora por completo.

Filme: Piscina Infinita
Diretor: Brandon Cronenberg
Ano: 2023
Gênero: Crime/Ficção Científica/Mistério/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★