O último grande filme de máfia está na Netflix Divulgação / Netflix

O último grande filme de máfia está na Netflix

Baseado no livro “I Heard You Paint Houses” (2004), do investigador Charles Brandt (1942-2024), “O Irlandês” se desenrola como uma reconstrução detalhada do submundo do crime nos Estados Unidos, com foco na ascensão e na queda de Francis Joseph Sheeran (1920-2003). Figura central no cenário mafioso entre as décadas de 1960 e 1970, Sheeran teve papel crucial no desaparecimento de Jimmy Hoffa (1913-1982), o poderoso líder sindical. Com direção de Martin Scorsese, o longa revisita um universo de lealdades fragilizadas e traições silenciosas, calcado no realismo implacável que marca a filmografia do cineasta.

O roteiro de Steven Zaillian desenvolve o percurso de Sheeran com a mesma paciência meticulosa do livro de Brandt, revelando sua ascensão a partir do primeiro encontro com Russell Bufalino (1903-1994), chefe da máfia da Pensilvânia. Sob a tutela desse padrinho do crime, Sheeran se torna um “pintor de casas”, eufemismo para assassino de aluguel, termo extraído diretamente das confissões documentadas por Brandt. Scorsese, fiel à sua capacidade de manipular a passagem do tempo para potencializar a narrativa, costura o passado e o presente do protagonista com uma fluidez notável, um efeito aprimorado pela edição precisa de Thelma Schoonmaker, sua parceira de longa data.

Assim como fizera em “Os Bons Companheiros” (1990) e “Cassino” (1995), Scorsese demonstra maestria ao expandir e comprimir sequências para dar ritmo e realismo à trama, recurso que se soma à fotografia expressiva de Rodrigo Prieto. O trio de colaboradores — Scorsese, Zaillian e Schoonmaker — foi indicado ao Oscar de 2020, ao lado de Prieto, e o longa chegou à disputa pelo prêmio de Melhor Filme. No entanto, a produção saiu de mãos vazias, uma das omissões mais notáveis da história recente da Academia.

Mais do que uma incursão pelo crime organizado, “O Irlandês” é uma reflexão sobre lealdade, arrependimento e o peso do tempo. Ao iniciar e encerrar sua jornada num asilo, onde Sheeran, agora debilitado e solitário, confidencia suas memórias a um padre, Scorsese transforma o gênero em algo mais do que um simples relato de ascensão e queda. O protagonista é tanto um executor implacável quanto um homem assombrado por suas próprias decisões, um contraste que humaniza sua trajetória sem absolver seus atos.

A relação entre Sheeran e Hoffa é explorada com tensão crescente, ilustrando os jogos de poder que definem o universo mafioso. A dinâmica entre Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci — nomes essenciais no cinema de Scorsese — confere peso dramático ao longa. O rejuvenescimento digital utilizado para acompanhá-los ao longo das décadas pode ter gerado discussões, mas a atuação e a caracterização garantem a imersão, principalmente na meia hora final, quando o tempo cobra seu preço de forma inescapável.

Talvez a própria força dessa história tenha sido um dos motivos pelos quais “O Irlandês” não encontrou reconhecimento na temporada de prêmios. Seja por sua duração ou por sua abordagem desprovida de romantização, o longa se destaca como um testamento sobre o fim de uma era e, quem sabe, uma despedida simbólica de Scorsese a um tipo de narrativa que ajudou a moldar. No fim das contas, os velhos rabugentos do Oscar podem não ter dado o veredicto esperado, mas a história do cinema ainda terá muito a dizer sobre esse filme.

Filme: O Irlandês
Diretor: Martin Scorsese
Ano: 2019
Gênero: Crime/Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★