Ridley Scott assumiu um desafio arriscado ao conceber “Gladiador”: fazer o espectador abrir mão, ainda que momentaneamente, da fascinação pelos refinados efeitos visuais da computação gráfica para imergir na Roma Antiga com o auxílio primordial da imaginação. Esse universo de brutalidade e glória, onde arenas se impunham como templos do espetáculo e batalhas entre escravos e feras eram entretenimento cotidiano, serve de cenário para uma jornada em que Scott esculpe um épico contemporâneo sobre honra, humilhação, inveja, tragédia, retaliação e redenção. Todos esses sentimentos convergem para um homem marcado pela traição e pelo infortúnio, que primeiro precisa confrontar suas próprias dores antes de se agarrar à chance distorcida, mas providencial, que o destino lhe oferece para acertar as contas com um inimigo que encarna a degradação moral em seu ápice.
No ano 180 da era cristã, o Império Romano se estendia dos desertos africanos às remotas fronteiras do norte da Inglaterra, abrangendo uma vasta parcela da humanidade, subjugada ao rigor absoluto dos césares. Esses monarcas, alçados ao trono pela intriga e mantidos pelo medo, governavam sob a chancela de um Senado que nada mais era do que uma fachada da suposta representatividade popular. Após doze anos de embates contra os bárbaros da Germânia, Marco Aurélio, um imperador cuja maior falha foi subestimar o perigo dentro de sua própria casa, encara o desfecho de sua última campanha militar. A cena que abre o filme, com um homem percorrendo um campo dourado sob uma luz etérea, ressurge em sua conclusão, instaurando um ciclo que transcende o tempo. O mesmo guerreiro implacável que domina os 150 minutos da narrativa se revela, na verdade, um espectro de sua antiga glória, em uma jornada que, como todo clássico imortal, ganha novos contornos a cada revisão atenta.
O roteiro de David Franzoni, John Logan e William Nicholson finca sua estrutura na meticulosa trajetória de vingança de Maximus Decimus Meridius, um general destituído de poder e dignidade após a traição de Cômodo, filho inescrupuloso do imperador. No primeiro ato, Russell Crowe e Richard Harris constroem uma relação que, apesar da aparente simplicidade, sustenta as reviravoltas épicas que virão. A morte de Marco Aurélio, por mais previsível que seja, surge com um impacto inevitável: quando o imperador cai, esgotado de guerra e decepções, inaugura-se uma tragédia que assola tanto os esquecidos pelas elites quanto os que as servem. Roma, mesmo ostentando o título de farol da civilização, exigirá de Maximus o sacrifício máximo diante de um adversário que um dia chamou de irmão.
Ignorar a potência da atuação de Crowe seria um erro primário. Provavelmente no papel mais icônico de sua carreira, ele personifica um herói de poucas palavras, mas de gestos inconfundíveis, captados em closes estratégicos e cortes cirúrgicos de Pietro Scalia. Seu desempenho, digno do Oscar que recebeu, ecoa a grandiosidade de Charlton Heston em “Ben-Hur”, mas sua força se amplifica ao dividir a tela com Joaquin Phoenix, cujo comprometimento visceral ao método stanislavskiano faz de Cômodo um antagonista tão fascinante quanto desprezível.
Muito além dos duelos sangrentos que empolgam a plateia, o embate central do filme está na oposição ideológica entre esses dois homens: de um lado, a virtude açoitada pelo infortúnio; do outro, a depravação disfarçada de poder absoluto. Scott, ciente da complexidade de seu vilão, insere nuances reveladoras, como a relação ambígua entre Cômodo e sua irmã Lucila, vivida por Connie Nielsen, a única pessoa capaz de suscitar nele resquícios de humanidade. “Gladiador” encerra sua saga com um triunfo amargo, ao mesmo tempo melancólico e grandioso, garantindo seu lugar entre os colossos da sétima arte. Mérito de Crowe, Phoenix e de um diretor que, ao rejeitar convenções fáceis, moldou um épico que ressoa além do tempo.
★★★★★★★★★★