Os sinais do fim do mundo nunca pareceram tão evidentes quanto na visão cinematográfica de Sam Esmail. “O Mundo Depois de Nós” não apenas abraça essa atmosfera de ruína iminente, mas a expande com um senso de urgência que se infiltra em cada cena. O diretor, conhecido por sua habilidade em fundir paranoia e realidade, constrói uma narrativa que transita entre a análise sociopolítica e a distopia contemporânea. O resultado é um retrato inquietante de uma sociedade à beira do colapso, no qual as estruturas que sustentam o mundo moderno são gradativamente corroídas.
Adaptado do romance de Rumaan Alam, o filme preserva o tom implacável do material original, transformando-o em um discurso visual carregado de ironia e desespero. Esmail não ameniza sua abordagem: com um viés quase panfletário, ele expõe as contradições e hipocrisias da classe média alta, especialmente no que se refere ao racismo, que, longe de ser um problema superado, continua enraizado na mentalidade coletiva. A brutalidade do mundo está lá, mas mascarada por conveniências sociais e discursos vazios.
No centro da trama, Amanda Sandford é uma mulher consumida pelo cinismo e pela frustração. Sua rotina em um apartamento de luxo no Brooklyn parece insuportável, e sua aversão à sociedade é explicitada em um monólogo cortante, no qual despreza aqueles que buscam melhorar a si mesmos e ao mundo. Julia Roberts assume o papel com uma presença hipnótica, oscilando entre o desdém e uma vulnerabilidade quase imperceptível. Seu olhar vazio percorre os 138 minutos de projeção como se já conhecesse o desfecho da história desde o início.
A fotografia de Tod Campbell contribui para essa sensação de deslocamento. Sua iluminação meticulosamente calculada cria um contraste entre a aparente normalidade e a iminente catástrofe. O trabalho de câmera afasta o filme do terror tradicional e o insere em um território onde a tensão cresce de forma quase imperceptível, até se tornar insuportável.
A mudança de cenário é sutil, mas definitiva. Amanda decide alugar uma mansão em Long Island para passar um fim de semana com o marido, Clay (Ethan Hawke, em uma atuação apagada), e os filhos Rose (Farrah Mackenzie) e Archie (Charlie Evans). O que começa como um retiro aparentemente comum logo se transforma em um experimento de sobrevivência emocional e moral. Pequenos sinais anunciam o colapso: a queda da conexão Wi-Fi, um navio afundando no horizonte, a sensação de que algo indefinível e avassalador está prestes a acontecer.
A narrativa ganha um novo contorno com a chegada de G.H. Scott (Mahershala Ali) e sua filha Ruth (Myha’la). Eles batem à porta no meio da noite, alegando serem os verdadeiros donos da casa e relatando um apagão massivo em Nova York. A partir desse momento, o filme se aprofunda em suas questões mais espinhosas: até que ponto os preconceitos influenciam nossas decisões? Quem tem o direito de se sentir seguro? Amanda, relutante, hesita em acreditar em G.H., e a tensão entre eles cresce a cada interação. Mahershala Ali, com sua presença magnética, equilibra serenidade e firmeza, enquanto Myha’la imprime camadas de força e sutileza a Ruth.
O humor ácido de Esmail perpassa toda a obra, mas, em determinado momento, ele cede espaço para um pessimismo quase absoluto. O desfecho, reminiscentemente semelhante ao de “Não Olhe Para Cima” (2021) e ao horror satírico de Jordan Peele em “Corra!” (2017) e “Não! Não Olhe!” (2022), transforma “O Mundo Depois de Nós” em uma distopia que ecoa como um aviso incômodo. A humanidade, quando confrontada com a incerteza, expõe suas falhas de forma tragicômica. E o filme, com sua abordagem mordaz, deixa claro que a maior ameça não é o colapso da civilização, mas a incapacidade de seus indivíduos de enxergar além de seus próprios preconceitos e ilusões.
★★★★★★★★★★