A Morte de Ivan Ilitch: Tolstói e a anatomia do nada

A Morte de Ivan Ilitch: Tolstói e a anatomia do nada

Ivan Ilitch está morto. A primeira cena de “A Morte de Ivan Ilitch” nos coloca diante do cadáver. Seus colegas de tribunal recebem a notícia com indiferença, preocupam-se mais com promoções e obrigações sociais do que com a perda do amigo. O velório é um ritual sem alma. A esposa busca vantagens financeiras. Os amigos calculam benefícios. Ninguém lamenta. O morto está ali, mas a morte já ocorreu antes. A tragédia não é o fim, mas o percurso. O que Tolstói narra não é o apagar de uma existência, mas a revelação de que ela nunca foi plena.

Ivan Ilitch não morre, descobre, antes do fim, que esteve morto em vida. Viveu corretamente, seguiu normas, cumpriu ritos, obteve sucesso. Seu casamento, sua carreira, sua casa bem decorada, tudo se encaixava no ideal burguês. Mas a doença o obriga a encarar um fato irredutível: sua vida foi um engano. A dor física se mistura ao pavor metafísico. Nada foi autêntico. A ordem social que o moldou não lhe oferece consolo. O diagnóstico médico não dá respostas. O tribunal, a casa, os amigos, tudo se desfaz.

Tolstói
A Morte de Ivan Ilitch (Principis, 96 páginas)

A narrativa de Tolstói desmonta a farsa do homem bem-sucedido. Ivan Ilitch acreditava estar no caminho certo, mas sua vida foi um simulacro. A proximidade da morte rasga o véu. Descobre-se prisioneiro de uma existência vazia, marcada por convenções, obrigações e uma felicidade que nunca foi genuína. A doença não é o problema. O verdadeiro horror é perceber que não há como voltar.

Tolstói não escreve sobre a morte, mas sobre a consciência dela. Não há transcendência, apenas lucidez tardia. A grande questão que o livro impõe não é o que significa morrer, mas o que significa viver. Quando a verdade se impõe, já não há tempo. Esse é o drama de Ivan Ilitch. Esse é o drama de todos nós.

“A Morte de Ivan Ilitch” começa muito antes do fim. Tolstói estrutura a narrativa como um diagnóstico progressivo: a doença é existencial. O mal de Ilitch não tem nome nem cura, não pode ser tratado com remédios comuns. O que o destrói não é o tumor, mas a vida que levou. Sua existência foi um erro, mas só percebe isso quando a dor já não permite distrações. Cada espasmo, noite em claro ou consulta médica são apenas confirmações de que tudo esteve errado desde o princípio.

A ironia de Tolstói é sutil e implacável. A medicina se mostra incapaz de dar respostas. Os médicos fazem diagnósticos vagos, prescrevem tratamentos ineficazes, desviam o olhar quando confrontados com a fatalidade. A linguagem técnica dos laudos apenas encobre a verdade que Ilitch se recusa a aceitar: sua morte não vem de uma enfermidade misteriosa, mas da própria forma como viveu. O tribunal, onde ele exercia sua autoridade, segue indiferente. A casa que construiu como símbolo de status torna-se prisão. O mundo em que confiava revela-se um teatro de sombras.

O diagnóstico de Tolstói é mais amplo. Seu sofrimento não é excepcional, mas um reflexo ordinário. Ele é o retrato de um homem que nunca refletiu sobre sua vida, aceitou o conforto como substituto do sentido, confundiu convenções com plenitude. O horror dos últimos dias não vem apenas da dor, mas da percepção de que seu destino era previsível. Viveu como todos. Morre como todos. E ninguém se importa.

Seus amigos comentam sua morte entre cigarros e pequenas ambições. Sua esposa já calcula a perda. O tribunal preenche a vaga sem hesitação. Ilitch acreditava estar no centro da sua história, mas a vida segue sem ele, sem memória ou ruído. Tolstói nos obriga a perguntar: quantos estão vivos por inércia? Quantos caminham para um fim semelhante, sem jamais ter vivido de fato?

A vida de Ivan Ilitch foi um rito burocrático. Cada etapa seguiu um protocolo, as escolhas atenderam a um modelo social. Seu casamento não veio do amor, mas da conveniência. Sua carreira não foi movida por vocação, e sim pela necessidade de ascensão. Sua casa foi pensada não para o conforto, mas para impressionar. Cada detalhe da existência foi planejado para satisfazer expectativas, como se viver fosse um processo administrativo. Quando a doença o obriga a parar, descobre que nunca soube realmente quem era. O que resta de um homem quando se retiram os papéis que desempenhou?

Tolstói constrói a tragédia com precisão. O cotidiano, que antes parecia seguro, revela-se uma armadilha. A vida burocratizada, controlada por regras e pela necessidade de reconhecimento social, não deixa espaço para o inesperado, para a reflexão, para a verdadeira alegria. A grande ironia é que Ilitch descobre sua liberdade apenas quando a morte já se tornou inevitável. A consciência plena chega tarde demais. Ele morre antes de conseguir fazer qualquer mudança real. E esse é o ponto central da crítica de Tolstói: a pior morte não é a física, mas a da consciência sufocada por uma existência sem autenticidade.

A estrutura de “A Morte de Ivan Ilitch” insere-se na tradição da novela literária, gênero híbrido que, como afirma Ian Watt, caracteriza-se por uma condensação extrema do drama existencial, explorando um único conflito com intensidade absoluta. A novela difere do romance por sua economia formal e concentração temática. Tolstói se afasta de seus grandes romances totalizantes e adere a uma estrutura mais enxuta, onde cada cena tem uma função implacável: levar Ilitch ao confronto inadiável com sua própria condição.

George Lukács define a novela como um “gênero da desilusão”, no qual o protagonista passa por uma crise irreversível que dissolve suas certezas. Essa definição aplica-se perfeitamente ao percurso de Ilitch. Ele inicia sua vida convencido de que há uma lógica ordenada que rege a sociedade, mas descobre, ao longo da narrativa, que essa lógica não existe. Sua “ascensão” no tribunal, seu casamento, sua casa bem montada — tudo se desfaz diante da percepção de que sua vida foi construída sobre um erro de premissa: a crença de que seguir normas garantiria sentido e felicidade.

O caráter filosófico da novela de Tolstói aproxima-se da tradição existencialista “avant la lettre”. Albert Camus, em “O Mito de Sísifo”, define o absurdo como a consciência de que o homem busca sentido num universo que não lhe responde. Ilitch experimenta esse mesmo choque ao perceber que sua dor não tem significado, que sua morte não será um evento trágico, mas apenas um incômodo passageiro para os que o cercam. Sua angústia não vem apenas do sofrimento físico, mas da constatação de que sua existência foi indiferente.

Tolstói
Tolstói expõe a fragilidade das certezas humanas, revelando o horror de uma vida vivida por inércia. Sua obra não fala apenas sobre a morte, mas sobre a urgência de viver com autenticidade

A organização do tempo na novela reforça essa dimensão angustiante. Mikhail Bakhtin, em “Questões de Literatura e Estética”, diz que a novela frequentemente se estrutura em torno de um “tempo-limite”, um período em que o protagonista se vê forçado a revisar sua vida sob um prisma irreversível. Tolstói constrói a narrativa dentro dessa lógica. A doença de Ilitch é esse tempo-limite que impõe um balanço tardio de sua existência. Cada cena de dor ou tentativa de buscar auxílio médico, cada visita de amigos falsamente preocupados são marcos desse tempo acelerado, onde a morte se aproxima sem possibilidade de recuo.

Outro elemento fundamental da novela é sua concentração simbólica. O espaço doméstico, que nos romances realistas do século 19 frequentemente simboliza segurança e estabilidade, aqui se torna um ambiente opressor. Peter Brooks analisa como a espacialidade na narrativa pode ser um espelho do conflito interno do protagonista. A casa de Ilitch, que deveria ser um refúgio, transforma-se em uma prisão sufocante. Sua cama não oferece descanso, seus móveis refinados tornam-se objetos inertes, sua sala de visitas recebe amigos que já o tratam como um morto em vida.

A contraposição entre Ivan Ilitch e Guerássim reforça a crítica social subjacente ao texto. Guerássim, o criado que cuida de Ilitch sem hipocrisia, é a única figura que aceita a morte com naturalidade. Enquanto a classe burguesa que cerca Ilitch nega a finitude e mantém um teatro de indiferença e cinismo, Guerássim não teme o fim da vida, sendo o único personagem que demonstra verdadeira humanidade. A novela sugere uma oposição entre os que vivem na falsidade da convenção e aqueles que, mesmo em condições humildes, possuem autenticidade.

A construção da narrativa, com o início abrupto no velório e o posterior recuo temporal, amplia o impacto da desconstrução progressiva da vida de Ilitch. Wayne Booth, em “A Retórica da Ficção”, argumenta que a escolha de um narrador impessoal e frio intensifica o efeito de distanciamento irônico. Tolstói não dramatiza excessivamente a trajetória de Ilitch; pelo contrário, o narrador mantém um tom quase clínico, expondo os fatos com uma precisão que realça o horror silencioso da existência medíocre do protagonista.

Essa frieza narrativa serve a um propósito maior: destacar a falta de transcendência na experiência de Ilitch. Diferente de Dostoiévski, que frequentemente concede a seus personagens momentos de epifania ou redenção, Tolstói mantém Ilitch preso a uma angústia que não se resolve. A morte, no fim, é apenas um alívio. Não há conversão mística, não há grandiosidade no último suspiro. Há apenas um homem que, tarde demais, compreende o vazio de sua vida.

O impacto final da novela vem da constatação inevitável: Ilitch poderia ser qualquer um. Ao contrário das grandes tragédias, em que o protagonista se vê diante de dilemas extraordinários, Ilitch não vive nada excepcional. Seu drama é o da vida comum, da rotina sem reflexão, da obediência a um sistema que promete felicidade, mas entrega alienação. É nisso que reside a força brutal da narrativa: ela não narra a morte de um herói, mas de um homem comum que apenas seguiu o fluxo e descobriu, tarde demais, que não viveu.

 “A Morte de Ivan Ilitch” nos coloca diante de nossas próprias ilusões, nossos hábitos, nossos automatismos. A pergunta final que Tolstói nos impõe não é sobre a morte, mas sobre a vida. Será que vivemos de fato? Ou apenas existimos, como Ivan Ilitch, aguardando um fim que virá sem que tenhamos feito as perguntas certas?

A dor final de Ivan Ilitch não vem apenas da doença, mas da súbita compreensão de que sua vida foi um engano. Seus últimos dias não são apenas um sofrimento físico, mas um lento despedaçamento interior. Ele revisita suas escolhas, tenta encontrar sentido em sua trajetória, busca consolo naquilo que construiu. Não encontra nada. O tribunal em que trabalhou, a casa meticulosamente decorada, os amigos respeitáveis, a esposa adequada — tudo se dissolve como um cenário de papelão. A consciência do erro é o verdadeiro tormento. O corpo pode falhar, mas o espírito agoniza ao perceber que viveu na superfície.

A única presença que lhe oferece algum alívio é o criado que não teme a morte. A simplicidade e a aceitação de Guerássim contrastam com a angústia desesperada de Ilitch. Tolstói constrói essa relação como um contraponto moral: Guerássim, mesmo sem posses ou status, vive de forma autêntica. Ilitch, com sua respeitabilidade social, não viveu. No último instante, um breve vislumbre de paz. Não é uma redenção cristã tradicional, não é um milagre. Apenas a aceitação. O medo se dissolve. A resistência cessa. A morte, paradoxalmente, vem como um alívio.

E então, o vazio. Ilitch desaparece sem deixar marcas profundas no mundo. A indiferença é o golpe mais duro. A tragédia de Ilitch não é única, mas universal. O grande horror que a novela revela não é a morte, mas a constatação tardia de que se esteve morto por toda a vida.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.