A neve esconde rastros, abafa sons e transforma cidades em refúgios de silêncio. Mas o que acontece quando esse manto gélido cobre algo mais do que apenas as ruas? “Os Assassinatos de Åre”, produção sueca da Netflix, explora essa dualidade: o branco imaculado da neve contra a escuridão dos segredos enterrados. Em uma narrativa que mistura tragédias pessoais, investigações implacáveis e crimes que vão além do óbvio, a série desafia a linearidade tradicional dos thrillers escandinavos. Baseada nos livros de Viveca Sten, ela se divide em duas partes — “Hidden in Snow” e “Hidden in the Shadow” — condensando duas histórias distintas em cinco episódios densos, sem espaço para dispersões.
No centro dessa tempestade está Hanna Ahlander (Carla Sehn), uma detetive que não buscava um caso, mas sim um recomeço. Suspensa da polícia de Estocolmo e recém-saída de um relacionamento fracassado, ela chega a Åre esperando encontrar paz. No entanto, a cidade, envolta pelo frio, revela um calor perigoso: uma adolescente desaparece, e o caso, que inicialmente parece um simples sumiço, se transforma em um crime brutal. Amanda Halvorsen, a jovem em questão, não era apenas uma estudante inocente; sua vida escondia camadas de mistérios — dinheiro ilícito, rumores de envolvimento com roubos e uma rede de mentiras que complicam a investigação. Quando seu corpo é encontrado em um teleférico, estrangulada, Åre se torna o epicentro de um suspense que apenas cresce.
O grande mérito da série reside na sua capacidade de controlar o ritmo narrativo com precisão. Não há pressa, tampouco um excesso de explicações que comprometa a experiência do espectador. Cada pista é revelada no momento certo, permitindo que o público monte o quebra-cabeça junto com os investigadores. A ambientação é um personagem à parte: a paisagem gelada, os dias curtos e a sensação de isolamento reforçam a atmosfera claustrofóbica, onde ninguém parece completamente inocente. A escolha de situar a história no período natalino apenas intensifica esse contraste — a celebração e a morte coexistem, tornando tudo ainda mais incômodo.
Entretanto, o que poderia ser uma conclusão impactante logo dá lugar a um novo enigma. Com o encerramento do caso de Amanda, a trama avança alguns meses, e Åre se vê diante de outro assassinato, desta vez envolvendo Johan Andersson, um ex-esquiador encontrado em pedaços próximo a uma linha de trem. O que parecia um acidente logo se revela um crime meticulosamente planejado, levando Hanna e seu parceiro, Daniel Lindskog (Kardo Razzazi), a seguir uma trilha ainda mais sombria. Dessa vez, os tentáculos do crime se estendem para além de um único culpado: corrupção, tráfico humano e violência sistêmica emergem como forças que moldam a cidade. Apesar da densidade desse segundo caso, a transição entre as histórias não ocorre de maneira orgânica, dando ao espectador a sensação de estar começando uma nova série dentro da mesma produção. Talvez dividir os mistérios em temporadas distintas tivesse sido uma escolha mais eficaz.
A relação entre Hanna e Daniel é outro ponto que levanta discussões. O que começa como uma parceria desconfiada se transforma em um vínculo cada vez mais próximo, insinuando um possível romance. Mas há um obstáculo claro: Daniel é casado e tem um bebê. A série, no entanto, não se decide sobre até onde quer levar essa tensão, e o resultado é um elemento que ora adiciona profundidade aos personagens, ora distrai do que realmente importa. Nos livros, esse aspecto pode ter sido mais bem trabalhado, mas na adaptação televisiva, falta consistência na forma como essa relação é construída.
As atuações, por outro lado, sustentam o peso da trama. Carla Sehn entrega uma Hanna crível, complexa, desgastada pelos próprios erros, mas ainda assim determinada. Kardo Razzazi, como Daniel, equilibra frieza e vulnerabilidade, ainda que em alguns momentos sua performance pareça excessivamente contida. O elenco secundário também se destaca, principalmente nas cenas que envolvem suspeitos e testemunhas — pequenos momentos que adicionam camadas à tensão sempre crescente.
Apesar de suas pequenas falhas, “Os Assassinatos de Åre” entrega o essencial de um Nordic noir eficiente: um ambiente que oprime, mistérios que desafiam e um final que, embora não seja impecável, se mantém na mente do espectador. A neve, ao contrário do que se espera, não esconde por muito tempo os segredos enterrados. E em Åre, eles sempre parecem estar à beira de serem descobertos.
Série: Os Assassinatos de Åre
Direção: Alain Darborg, Joakin Eliasson
Ano: 2025
Gêneros: Crime/Drama/Mistério/Thriller
Nota: 9