Se você é latino-americano e ainda não leu “Pedro Páramo”, tudo bem. Está perdoado se ao menos já leu “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez. Mas saiba que Juan Rulfo foi o autor que lançou as bases da tradição do realismo fantástico latino-americano. Em seu único romance, ele narra a história de Juan Preciado, que viaja a Comala, uma cidade fantasma no México, em busca de seu pai, Pedro Páramo.
Rulfo inova ao criar um ambiente onde não sabemos se os personagens que interagem com o protagonista estão vivos ou mortos — dúvida que, em certo momento, recai sobre o próprio Juan Preciado. O estilo fragmentado e a influência de William Faulkner contribuem para essa atmosfera sombria e onírica. Além disso, o romance utiliza técnicas narrativas inovadoras, como personagens ausentes e uma fluidez temporal que confunde passado e presente.

Outro aspecto interessante do livro pode ser analisado à luz do ensaio “O romance e a procriação”, de Milan Kundera. Ele observa que, nos grandes romances da história, protagonistas raramente têm filhos. Cervantes, Stendhal, Balzac, Dostoiévski e Proust criaram personagens sem descendentes, refletindo uma cultura cada vez mais individualista. O romance, sendo uma arte moderna e europeia, isolou a experiência do indivíduo no centro de tudo.
Kundera percebeu a ruptura dessa tradição ao ler “Cem Anos de Solidão”, de García Márquez, um livro em que as personagens geram descendentes, perpetuando seus nomes e experiências. Isso reforça a ideia de continuidade e pertencimento, em oposição ao isolamento do indivíduo. Não por acaso, Márquez se inspirou em “Pedro Páramo” para criar sua obra-prima. O romance de Rulfo é a síntese do espírito latino-americano: forte senso de comunidade e uma relação íntima com o sobrenatural.
Nosso continente, colonizado sob uma cultura barroca imposta por portugueses e espanhóis, nunca passou por um século das luzes que nos afastasse da metafísica e das tradições coletivas. Resistimos como uma cultura híbrida, em constante tensão entre nossa identidade espontânea e a influência da cultura importada dos Estados Unidos. Nesse contexto, “Pedro Páramo” é um marco que aponta para um horizonte ainda em construção na literatura latino-americana.
Essa relevância permanece viva: em 2024, a Netflix lançou uma adaptação do livro, trazendo essa obra fundamental para um novo público.
O nome completo do autor é Carlos Juan Nepomuceno Pérez Rulfo Vizcaíno. Curiosamente, “Juan” não fazia parte de seu nome de batismo, tendo sido acrescentado depois, em homenagem ao avô. Essa escolha acabou se revelando auspiciosa: “Juan Rulfo” é homônimo de Juan Rulfo Gutiérrez, autor do poema épico “La Austríada”, citado por Cervantes no capítulo 6 de “Dom Quixote”, “Do Gracioso e Grande Escrutínio que o Padre e o Barbeiro Fizeram na Biblioteca de Nosso Engenhoso Fidalgo”.
Esse capítulo é especial porque, quando “Dom Quixote” foi publicado em 1605, ainda não existiam grandes teorias estéticas nem crítica literária formal. No entanto, ali se esboça um critério — temperado de ironia — para julgar os livros que levaram Quixote à loucura. A sobrinha do protagonista quer queimá-los todos, mas, ao revisar alguns títulos, o padre decide salvar Tirante, o Branco, justificando sua escolha:
“Valha-me Deus — disse o cura, soltando um grande brado —, que aqui está o Tirante o Branco! Dai-mo cá, compadre, que faço conta de ter achado nele um tesouro de contentamento e uma mina de passatempos. Aqui está Dom Quiriéleison de Montalbán, e o cavaleiro Fonseca, com a batalha que o valente Tirante fez com o alano, e as agudezas da donzela Prazerdaminhavida, com os amores e embustes da viúva Repousada, e a senhora Imperatriz, enamorada de Hipólito, seu escudeiro. Deveras vos digo, senhor compadre, que por seu estilo é este o melhor livro do mundo: aqui comem os cavaleiros, e dormem e morrem em suas camas, e fazem testamento antes de sua morte, juntamente com todas essas coisas de que todos os demais livros deste gênero carecem”.
A importância desse trecho está nos valores que o padre enxerga em uma boa obra. Ele ainda valoriza a verossimilhança, característica da estética aristotélica, mas já com um realismo renovado. Cervantes, ao escrever “Dom Quixote”, inaugura o romance moderno, e diferentes escolas literárias adaptariam sua essência ao longo dos séculos.
Afrânio Coutinho aponta que a crítica literária brasileira só começou a se estruturar como atividade reflexiva na década de 1950. Desde então, Jorge Amado tem sido nosso maior representante do realismo mágico. Mas, pensando bem, talvez “Pedro Páramo” seja único, e a categoria “realismo mágico” seja apenas uma conveniência mercadológica.