Poucas figuras da história francesa encapsulam com tamanha intensidade o fascínio e a contradição do Antigo Regime quanto Jeanne du Barry. Criada sem privilégios, destituída de qualquer linhagem respeitável, ela não apenas ascendeu ao epicentro do poder monárquico, mas também desafiou convenções sociais e políticas em um mundo rigidamente hierarquizado. Sob a direção de Maïwenn, a narrativa de sua meteórica ascensão e sua inevitável derrocada ganha contornos cinematográficos exuberantes, embalados por uma estética que beira o delírio ornamental. No entanto, o verdadeiro mérito do filme reside na forma como explora o paradoxo de uma mulher que se tornou o centro da monarquia, sem nunca ser realmente aceita por ela.
Ao escalar Johnny Depp como Luís XV, a produção não apenas provocou curiosidade, mas também acendeu debates inflamados sobre a capacidade do ator de sustentar um papel de tamanha carga histórica. E, para surpresa dos mais céticos, sua interpretação escapa da caricatura esperada. Longe do histrionismo que poderia transformar o rei em uma figura teatral e exagerada, Depp entrega um soberano silenciosamente imponente, um homem ciente de sua decadência, cujo tédio é temperado apenas pelo frescor da presença de Jeanne. Sua performance, econômica e ponderada, contrasta habilmente com a energia desafiadora da protagonista, interpretada pela própria Maïwenn.
Mas quem foi, afinal, Jeanne du Barry? Muito se fala sobre sua condição de cortesã, sobre sua trajetória de ascensão impulsionada por favores masculinos, mas reduzir sua história a um simples jogo de sedução seria ignorar a inteligência estratégica que a levou a conquistar um dos tronos mais impenetráveis do mundo. Nascida Jeanne Vaubernier, filha ilegítima de um monge e de uma doméstica, ela não conheceu privilégios, tampouco teve acesso à educação formal. No entanto, aprendeu desde cedo a arte da adaptação — uma sobrevivente em um sistema que não oferecia saídas dignas para mulheres como ela.
O filme retrata com precisão os rituais e humilhações a que Jeanne foi submetida para ser aceita na corte. A mais emblemática dessas provações foi o exame ginecológico público ao qual teve que se submeter para ser considerada “digna” de compartilhar o leito do rei — um lembrete brutal de que, por mais poderosa que uma mulher pudesse se tornar naquele contexto, sua legitimidade ainda dependia da validação masculina.
Visualmente, “A Favorita do Rei” é um espetáculo de excessos — mas são excessos que fazem sentido. Versalhes, com seus corredores intermináveis e seus salões dourados, não é apenas um cenário deslumbrante; é um reflexo da própria lógica da corte, onde cada gesto e cada olhar têm peso político. Maïwenn evita anacronismos estilísticos e investe na reconstituição meticulosa da época, sem que a grandiosidade estética sobrepuje a densidade do enredo. Se em “Maria Antonieta” (2006), de Sofia Coppola, o castelo servia como um playground de luxo para uma rainha adolescente, aqui ele se apresenta como uma gaiola de ouro onde cada movimento de Jeanne é observado e julgado.
O jogo de poder que se desenrola entre a cortesã e a nobreza tem nuances fascinantes. Jeanne é simultaneamente desprezada e invejada, tolerada apenas enquanto o desejo do rei por ela persiste. Mas sua presença em Versalhes não representa apenas um capricho real; é também um lembrete desconfortável das fissuras que já corroíam a monarquia. Ao se permitir uma liberdade que nem mesmo as rainhas desfrutavam — cavalgando ao lado de Luís XV, tocando-o em público, ousando vestir calças —, Jeanne subvertia a ordem natural da corte e pagava o preço por isso.
A decadência de sua influência não chega como uma reviravolta inesperada, mas sim como uma consequência inevitável do próprio sistema que a permitiu florescer por um breve período. Quando Luís XV sucumbe à varíola, a corte, que antes a tolerava por necessidade, vira-se contra ela sem hesitação. O filme captura esse momento com uma teatralidade que beira o grotesco: Depp, coberto de feridas, agoniza enquanto sua amante observa impotente o desmoronamento de sua posição. Afastada de Versalhes, Jeanne descobre, da maneira mais cruel possível, que seu poder era tão efêmero quanto os caprichos do rei que a elevou.
Ao final, o longa não apenas reconstrói uma figura histórica frequentemente relegada à margem, mas também sugere um questionamento mais amplo sobre o papel das mulheres na esfera do poder. Jeanne não foi uma revolucionária no sentido clássico, mas, ao transitar entre os espaços interditados de uma sociedade que se aproximava do colapso, ela antecipou, à sua maneira, as rachaduras que levariam à Revolução Francesa.
A verdadeira força do filme não está apenas em sua narrativa exuberante ou na acidez de sua crítica social, mas na maneira como resgata uma mulher que, por muito tempo, foi reduzida a um estereótipo. Mais do que um escândalo ambulante, Jeanne du Barry foi um reflexo do próprio sistema que a condenou — um sistema tão obcecado por aparências que não percebeu que seu próprio brilho já começava a se apagar.
★★★★★★★★★★